sábado, 22 de maio de 2010

Exílio

Já faz mais de um ano. Há tempos não tenho caçadas ou perseguições no meio da noite. Minha estrada seguiu um rumo diferente. Eu falhei em capturar a criatura, agora devo pagar por meus pecados.

Um ano enfiado nesta paróquia, cercado de velhos que se dizem bons cristãos. Não sei quem é mais hipócrita aqui, eu, que digo estar tentando mudar meu destino, ou eles que dizem ser livres de pecados e tentações.

Cheguei aqui como um peregrino que perdeu sua fé. Eu falhei em uma missão importante e por isso não me sinto digno de continuar caçando. O mundo não pode arcar com as conseqüências das minhas falhas.

Eu era o melhor no que fazia, justamente por isso não me era permitido falhar. Com certeza o que aquela criatura levou já custou muitas vidas inocentes e o sangue delas está nas minhas mãos. A culpa é minha.

Não importa quantos falsos cristãos eu expulse daqui. Esses pedófilos, ladrões e sabe-se lá mais o que não param de vir procurar perdão através de um homem que não consegue perdoar nem os seus próprios pecados.

Ainda bem que o dia finalmente acabou. Não há nada como passar pela porta do meu quarto, sentir o cheiro de mofo que impregna esse lugar, ir até a cama, arrastá-la, abrir espaço entre as pedras na parede e poder finalmente fumar o meu cigarro em paz. Esse lugar realmente está me afetando.

Não importa quantas vezes eu reveja as runas marcadas sobre a porta, as linhas de sal que cercam o quarto, ou mesmo volte a polir todas as armas que nunca pretendo voltar a usar, o tempo todo tenho a impressão de que isso não acabou. Cedo ou tarde vou ter que lidar com os meus demônios.

Alguém bate à minha porta. O som da madeira rangendo acaba com o meu momento de sossego. Que tipo de idiota vem me procurar a essa hora? Esses pedantes hipócritas nunca se cansam de reclamar da vida?

Confiro as minhas armadilhas, a faca de prata presa à bota, o cantil de água benta para servir ao convidado, a pistola em minhas costas presa ao cinto e a faixa de sal abaixo da fresta da porta. Com tudo em ordem e a despeito de minha notável irritação, acabo optando por atender a maldita porta.

Acho que essa era uma das últimas coisas que eu esperava ver. Como raios ela chegou até aqui? Os olhos castanhos me fitam como no dia em que ela morreu; seu cabelo ruivo caindo sobre os seios e o colete preto ainda manchado sobre a blusa branca com as mangas dobradas e sujas. Eu a reconheceria em qualquer lugar.

- Olá, major. – Ela me cumprimenta com um sorriso, parece que nada aconteceu e é apenas mais um dia de trabalho. Odeio essa sensação.

- Bianca, eu... – Não adianta. Por mais que eu me esforce às palavras não saem. Eu falhei com ela no passado e agora ela sorri pra mim como se nada estivesse acontecendo.

Seus olhos me encaram durante o silêncio. Ainda estou decidindo como reagir quando ela fala de novo:

- E então, vai me deixar entrar ou ficar me olhando com essa cara assustada o dia todo? – Em um segundo de diálogo ela já está testando a minha paciência. Definitivamente é ela.

- Bianca, o que houve com você? Eu te enterrei faz cinco anos! Quem foi o desgraçado que te trouxe de volta? Eu juro que vou fazê-lo pagar! – Me recupero do baque e a fúria me domina quando penso no que pode ter acontecido.

- Uhum. Oi, pra você também, major. E, não, ninguém me trouxe de volta. Eu apenas não tinha forças o bastante pra me materializar e se você não me ajudar não vou poder me manter assim por muito mais tempo, então, dá pra arrastar o sal e me deixar entrar? – O tom desafiador dela é único, eu sabia que tinha coisa errada chegando.

Faço uma pequena brecha na linha de sal e risco uma das runas no canto da porta. Ela me lança um sorriso sarcástico e entra apressada. Lembro-me de quando era eu a ter esse tipo de expressão estampada no rosto.

- Você continua o mesmo. Ainda se culpando por tudo de errado no mundo. – As palavras dela são cortantes. Antes de encará-la novamente me ocupo em arrumar a linha de sal e talhar a runa de volta.

Quando nossos olhos se encontram ela está sentada sobre a minha cama encarando o lugar onde guardo o meu antigo equipamento de caça.

- Há quanto tempo você está comigo? – Lanço a pergunta ignorando o comentário dela sobre a minha culpa.

- Basicamente desde que você decidiu bancar a criança e fugiu das suas responsabilidades. – As alfinetadas não param. Nem mesmo depois de morta ela pára de me atormentar com a verdade.

- Eu não fugi de nada. Apenas aceitei que não era mais digno do trabalho. – Exagerei. Dessa vez não consegui convencer nem a mim mesmo.

- Por favor, major. O que eu preciso fazer pra que você me leve a sério, começar a conversa com: “Perdoe-me, padre, pois eu pequei?” – Apesar do sarcasmo ela fala sério. Quando se é parceiro de alguém por tempo de mais você aprende a ler nas entrelinhas de cada sentença.

- Então, por que ainda guarda seu equipamento de caça e faz questão de que ele esteja pronto pra ser usado? – Ela, de fato, é a representação da personalidade que eu costumava ter.

- Eu mudei, Bianca. Não sou mais o combatente impulsivo e sem consciência que eu costumava ser. – As palavras são ditas tentando convencer mais a mim do que a ela.

A única resposta que ela me dá é uma encarada séria. Os comentários sarcásticos que eu censurei em minha mente por tanto tempo começam a vir à tona. É melhor mudar o assunto.

- Do que você precisa? Não disse que estava com pouca energia?

Um sorriso se abre em seu rosto.

- Não. Eu só precisava que você me deixasse entrar. Já estou ligada a uma certa peça de seu equipamento há muito tempo. – Droga. De fato eu estou enferrujado. Antigamente eu jamais acreditaria nesse tipo de história desesperada sem uma prova.

- Touché. – Ao menos eu ainda sei reconhecer quando fui vencido. – Então o que fez você reaparecer justamente agora? – A pergunta surte efeito imediato. Ela entende que o momento de brincadeiras acabou e a seriedade que se apresenta em sua expressão é a prova disso.

- Temos pouco tempo até que os céus se tornem vermelhos. Devemos nos mobilizar o quanto antes para impedir que aquela criatura que você deixou escapar consiga terminar os rituais. – As palavras me atingem como facas, eu sabia que cedo ou tarde teria que tornar a lidar com isso. – Eles já estão quase prontos, mas ainda podemos impedi-los.

Minha única reação imediata é acender outro cigarro. Maldição. É a primeira vez nos últimos meses que fumo mais de um na mesma noite.

- Muito bem, Bianca. Você quer que eu arrume a minha bagunça, mas o que te faz pensar que dessa vez as coisas serão diferentes? Que eu não vou simplesmente deixá-lo escapar por entre os meus dedos novamente? – Novamente as perguntas são direcionadas mais a mim mesmo do que a ela. Será que eu estou pronto pra voltar a caçar?

Ela se levanta, ainda com o rosto sério, segura meu rosto entre suas mãos (mesmo sendo um espírito o toque dela continua a me acalmar), seu olhar profundo mergulha dentro do meu e ela me responde com calma:

- Porque, dessa vez, você não estará sozinho. – Não posso evitar o sorriso que se abre em meu rosto.

- Não me leve a mal, Bianca, mas há pouco que um espírito pode fazer em campo.

Ela me abraça e sussurra ao meu ouvido:

- Eu tenho os meus truques, lembra? E, além disso, quem disse que eu estou falando de mim? – Ela só pode estar brincando!

Me afasto imediatamente, como ela ousa insinuar algo assim?

- Bianca, nem pense nisso! Eu trabalho sozinho. O que aconteceu com você é prova disso, eu não sou a pessoa certa pra isso. Não existe a menor chance de você me convencer a liderar um grupo. – Ela apenas me observa enquanto deixo minhas frustrações extravasarem.

- E quem disse que você vai liderar? – Ela me apunhala em meu ponto fraco.

- Além de montar uma equipe você ainda quer que eu obedeça às ordens de alguém? - Estou completamente fora de mim, mas não consigo evitar. Como sempre, ela tem o dom de me tirar do sério.

- É bom que você já tenha feito as pazes com a idéia de montar uma equipe. – Traído por minha própria fúria.

O silêncio se torna um peso enquanto nos encaramos nos próximos segundos. Posso sentir o cigarro queimando entre os meus dedos, dou mais um trago e tento recobrar a razão.

- Ótimo. Eu assumo a minha responsabilidade nisso tudo, mas me recuso a arrastar mais alguém pra dentro disso. Nós vamos caçar, seremos apenas eu e você, entendido? – Minha postura muda conforme as palavras saem. Estou de fato voltando a ser um caçador. E se vai ser assim, então serei novamente o melhor que há no serviço. Mas essa é minha sina e eu não pretendo deixar mais ninguém ser pego no fogo cruzado entre eu e os malditos.

- Tudo bem, major. Quando partimos? – O sorriso vitorioso domina sua expressão. A menina sabe mesmo como avivar meu espírito.

Ela espera por uma resposta enquanto me viro com o cigarro na boca, abro o baú onde escondia meu equipamento, - Precisa mesmo perguntar? - destravo a velha escopeta e olho de volta pra ela. - Vamos caçar alguns demônios.

11 comentários:

  1. Momento supernatural... auhiuahiauhiauh mas ficou legal sim, vc podia ter esticado até as cenas de ação... ia ficar legal!!!!!!

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  2. Algo entre Supernatura e Salomon Kane.
    Adorei a bianca e a forma como ela "ajuda", "atormentando".

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  3. gostei disso, que lindo!
    mesmo depois da morte ela ainda voltar pra ajudar ele.
    mais.. mais.. mais.. rs :)

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  4. Hmmm, agora as histórias estão começando a ter continuações! Cool! to acompanhando aqui!

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  5. "Vamos caçar alguns demônios"
    Falou como se fosse a coisa mais facil do mundo.

    Esse é o conto com menos ação e o mais intrigante.
    Gostei!

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  6. Vamos caçar demônios??? Mas não é o que fazemos todos os dias, em nossas batalhas internas???? Quantos mais devemos enfrentar?
    que tal continuar com a Bianca em outras narrativas???? Gostei dela!

    Belo conto!

    Parabéns!!!

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  7. To com a Bia Marquez e não abro mão falou tudo!!
    Adoreii este contoo!

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  8. Como sempre acho que faltou um pouquinho de ação.
    Ficou uma história muito intrigante, sem sacanagem me amarrei nesse texto, show.

    Bisão.

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  9. ta mtoo maneiro..vou continuar lendo =D

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  10. ta apaixonado? hahahah eu adorei, eu nao sei como vc viaja tanto, só voce mesmo.. vc tem mt talento! agora eu vou dividir o meu tempo com o livro que estou lendo e com isso aqui, que como sempre acaba com um final com gostinho de quero mais hahaha

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  11. É, a "Bianca" é foda, atormenta até conseguir botar o "major" de volta na atíva, muito bom, tinha até achado que essa história tinha começado no mais recente "Preparativos" mas não,engano o meu, total,começa exatamente no mais profundo tormento emocional,rrrrrrrrrrrrsssssssssssss, muito bom, parabéns cara, muito legal, parabéns.

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