quarta-feira, 30 de junho de 2010

Desafio

“Highway to hell... I´m on the highway to hell”

Essa ainda é uma das poucas músicas que fazem sentido quando estou trabalhando no carro. Estou debaixo desse motor faz duas horas, mas não importa, vou ficar aqui o tempo que for necessário pra colocar essa belezinha pra correr de novo.

Desde que saí da força aérea o mais próximo que tenho de um jato é o meu carro. As corridas são divertidas, fazer aqueles idiotas comerem poeira é impagável, mas ainda assim não é a mesma coisa, sinto falta do meu jato, de poder pilotar pelos céus, vagar entre as nuvens e ficar a sós com o paraíso.

Mas já que não posso mais pilotar ao menos vou usar o que aprendi lá no meu carro, essa belezinha só não voa porque eu ainda não posso tirá-lo do chão, não importa quantos mecânicos digam que é loucura usar os upgrades de jatos no meu carro, experiência conta mais do que conhecimento, então eu faço as coisas do meu jeito e sempre acabo vencendo as corridas, bem, quase sempre.

A corrida dessa noite deve ser boa, as apostas estarão altas e eu preciso da grana. Os trabalhos com Jarael pagam cada vez pior e se eu inventar de não pagar a parte dele na igreja as coisas sempre terminam mal pra mim, então é melhor manter o pouco que ele oferece comigo, brigar com aquele anjo definitivamente não é uma boa idéia, ele não tem senso de humor.

Já não sei mais se quero que ele apareça logo com outro serviço. Cada vez que ele aparece eu ponho o meu pescoço em risco, não é que eu não goste da emoção de fazer isso, apenas acho que o pagamento poderia ser melhor. Pro inferno, no final eu acabaria fazendo o trabalho de graça, só pela diversão de botar aqueles idiotas de volta no lugar deles, mas que o Jarael jamais desconfie disso, ou o aluguel da garagem é que vai ficar em risco.

Porcaria, o rádio parou de novo. Saio debaixo do carro com o rosto e o macacão imundos com graxa, óleo e sabe-se lá o que mais vive ali embaixo. Dou uma pancada de leve no rádio e ele logo volta a funcionar, odeio essa coisa velha. Quando me viro de volta para o carro me deparo com aquilo que eu sabia que cedo ou tarde aconteceria: Jarael está sentado no banco do carona me encarando com a mesma expressão vazia de sempre.

Dou um suspiro cansado, limpo as mãos em um pano e abro a porta.

- O carro não ficará pronto até de noite, senhor. Por favor, queira retornar mais tarde.

Ele me responde virando seu olhar vazio em minha direção. O fato de ele não ter senso de humor não quer dizer que eu não possa ter.

- Entre no carro, nós precisamos conversar. – O tom frio e inexpressivo dele de fato combina com o olhar. É extremamente monótono conversar com alguém assim.

Entro no carro e fecho a porta, seria inútil tentar dizer a ele que estou ocupado.

- O que houve dessa vez? – Pergunto me acomodando no assento do motorista.

O olhar dele se perde olhando para a parede novamente, eu realmente queria saber como ele consegue ser tão vazio. Ele respira fundo, nessas horas eu me pergunto o quão humano e o quão anjo ele realmente é? Nunca engoli esse papo de origem divina e o fato de ele se esquivar sempre que eu toco no assunto realmente não colabora para que eu confie mais nele.

- Estamos com um problema. Precisamos que você faça outro serviço para nós. – Ele não transmite preocupação alguma em seu tom de voz, mas as palavras me parecem sérias por algum motivo que eu não sei explicar.

- Tudo bem. O que vocês querem que eu faça dessa vez? – Quanto mais cedo eu aceitar o trabalho, mais cedo me livro dele e posso voltar a trabalhar, já vi que não vou me livrar dessa mesmo.

- Existe uma poderosa feiticeira a quem precisamos consultar. Ela morreu há muitos anos e estava presa no inferno desde então. Porém, sabe-se que ela recentemente escapou e provavelmente deve estar em busca de um modo de se atar de volta ao mundo dos mortais. É vital que nós a encontremos o quanto antes. – Ele fala sem me olhar nos olhos, isso me irrita, mas mesmo assim presto toda atenção em suas palavras. A coisa parece mais importante do que eu antecipara.

- E quem é essa feiticeira? Por que ela é tão importante? – Minhas perguntas são seguidas de um silêncio realmente incomodo. Se eu já não estivesse acostumado com Jarael diria que ele estava ponderando sobre o quanto me contar, mas sendo quem ele é, fica difícil saber o que se passa na sua cabeça. Por um segundo agradeço aos céus por não ter que enfrentá-lo em uma mesa de pôquer, ele seria um adversário e tanto.

- Ela escapou do inferno com algumas informações que nós precisamos. Não sabemos quantos mais escaparam com ela e nem por onde ela saiu, além disso só o que posso lhe dizer é o seu nome, no demais você terá que localizá-la por seus próprios meios.

- Calma lá. Como raios eu vou encontrar uma feiticeira morta com apenas um nome? – É revoltante como esse anjo acha que eu tenho algum tipo de onisciência quando se trata de fazer o trabalho sujo dele.

- Não espere que eu faça o seu trabalho, piloto. Apenas faça o que lhe é mandado e será recompensado. – Não sei o que me revolta mais, se é a arrogância dele ao me passar esse tipo de missão, ou se é o fato de nem mesmo quando discutirmos o tom de voz e a expressão dele se alterarem.

- Como se vocês me pagassem algo que possa ser remotamente justo pelo que eu faço. – É mais um desabafo de algo que estava engasgado do que de fato uma reclamação da qual eu esperaria alguma resposta. – Mas que seja. Qual é o nome da infeliz?

- A feiticeira se chama Bianca. Eu volto a entrar em contato quando você conseguir algo sobre ela. – Ele termina de falar como se eu não houvesse acabado de reclamar de tudo o que ele diz e, antes que eu possa acrescentar algo mais, ele sai do carro e desaparece ao bater a porta, me deixando sozinho de novo com a minha música e agora com o problema de precisar encontrar essa tal Bianca. Vou ter que pensar sobre isso durante a corrida, agora preciso terminar de arrumar o carro.

sexta-feira, 18 de junho de 2010

Iniciação

Já se passaram dois dias desde que cheguei aqui. Não agüento ficar esperando a noite chegar pra poder realizar o ritual. Nos outros dias também foi assim, passei o dia todo agoniada esperando anoitecer pra poder fazer o que precisa ser feito. Ao menos nesse casebre isolado não tenho que me preocupar com os assuntos da matilha. Nada mais importa, as ordens de Kida, as maquinações de Wolfgart, ou mesmo a vigilha silenciosa dos guardiões. Aqui eu posso ser eu mesma e ficar a sós com os meus pensamentos. Isso às vezes faz bem pro espírito. Me pergunto como Kida se sentiu quando teve que passar por isso dez anos atrás.

Odeio essa sensação de não saber o que vai acontecer a seguir. No primeiro dia eu não fazia idéia de que tipo de animal eu teria que caçar pra poder conseguir o meu amuleto. Acabou que enfrentei um urso cinzento, péssima idéia. Nunca havia encontrado um animal tão forte. Escapar de cada golpe de suas patas era uma proeza única e, acredite, ele tentou me acertar diversas vezes. Cada uma delas me fazia pensar que seria a hora de perder a minha cabeça, mas no fim a força dele não foi páreo pra minha agilidade combinada a sabedoria que adquiri nos combates simulados com os filhotes da matilha. Foi realmente duro, quando o combate terminou eu estava completamente sem forças, era possível sentir cada um dos meus músculos gritando de exaustão, mas mesmo assim meu espírito estava realizado, as feridas ardiam, o suor escorria pelo meu rosto sujo de terra, e a brisa fria noite trazia os aromas da floresta aos meus pulmões que praticamente gritavam, mas ainda assim eu não poderia estar me sentindo melhor quanto ao que acabara de realizar. É nisso que dá encarar o animal mais poderoso das redondezas, o urso cinzento é conhecido nessas terras, pois nem mesmo os mais audazes predadores ousam desafiá-lo e eu ousei. Onde eu estava com a cabeça? Ao menos agora não há mais nenhum modo de Wolfgart tentar assumir o trono da família. Eu não quero liderar a matilha, realmente acho que não fui feita pra isso, mas se esse for o único modo de deter Wolfgart é exatamente isso o que eu farei e é exatamente pra isso que serve a presa do urso, pra provar o meu lugar de direito. Lembro que anos atrás Kida voltou com a garra de um leopardo e Wolfgart com os chifres de um touro selvagem, os animais mais poderosos derrotados dentro da matilha. Espere só até que eles vejam as presas do urso cinzento, mal posso esperar pela expressão revoltada no rosto dele e o orgulho nos olhos de Kida.

Ontem foi a mesma coisa, eu ainda estava cansada da caçada na noite anterior, e fazer qualquer coisa nesse casebre é trabalhoso, mas mesmo assim eu ainda fiz uma coisa ou outra. Quando a noite chegou iniciei o ritual de purificação. Fui até a margem de um rio perto daqui e me banhei sob a luz a da lua. As águas naturais são realmente poderosas, não só o meu corpo ficou completamente limpo e renovado como também o meu espírito. A força das águas conseguiu limpar todos os sentimentos negativos que eu carregava. Eu não mais pensava no meu rancor por Wolfgart, não estava mais preocupada com Kida e adquiri uma nova confiança em mim mesma. Os músculos pararam de doer, as feridas da caçada não mais ardiam e eu pude ficar completamente relaxada, meu corpo e meu espírito estavam purificados e unificados com a natureza. Quando voltei ao casebre acendi os incensos de ervas que trouxe comigo de casa e preparei os artefatos pro ritual de hoje. A casa agora vibrava de modo diferente, o aroma de ervas do incenso me trazia bons pressentimentos. Foi realmente o dia mais tranqüilo que tive em anos, consegui dormir o sono leve de um bebê embalado pelo sussurro amigável do vento e das águas do rio.

Hoje acordei bastante disposta apesar do tempo fechado e da neblina que cobria quase todo o campo. Tive vontade de assumir a minha forma animal e correr pelos campos, sentir o vento e a mata como se fossem parte de mim mais uma vez, mas preferi poupar as forças pro ritual, afinal, esse vai ser o mais difícil e mais importante de todos. Já está tudo pronto, só espero que essa chuva não dificulte as coisas, vai ser um saco manter a fogueira acesa com a chama viva e brilhante se estiver chovendo muito. Não consigo parar de pensar em quem será o meu espírito guardião e que forma ele irá assumir, estou realmente curiosa pra saber. E não sei por que, mas a aquela mesma sensação que senti semanas atrás quando estava caçando perto de casa tem estado cada vez mais presente. Não sei o que se passa comigo, é como se o tempo todo algo ou alguém estivesse a espreita, apenas me observado e me estudando. Não gosto nem um pouco disso. É até agradável saber que tem alguém tão interessado em mim a ponto de me vigiar a cada passo, mas é ao mesmo tempo extremamente angustiante não fazer a menor idéia de quem é essa pessoa, se é que ela realmente existe.

Quando finalmente decido cessar meus devaneios e arrumar algo pra fazer, noto algo peculiar no casebre. Um pequeno camundongo branco de olhos vermelhos está parado bem no meio da sala me encarando. Eu estou no meio da mata, afastada de tudo, seria impossível que um camundongo branco chegasse aqui sozinho, especialmente um tão bonitinho, se fosse uma ratazana cinza eu nem diria nada, mas não tenho a sorte de algo tão simples acontecer comigo, são só as coisas bizarras mesmo. Chego a pensar em ignorar o pequenino, talvez ele desapareça e eu não tenha que lidar com outra loucura, mas, pra variar, a curiosidade me vence e eu acabo perseguindo a bola de pelo pela casa. Por fim consigo capturá-lo na cozinha (se é que se pode chamar aquilo de cozinha). Seguro o pequeno animal cuidadosamente, mas com firmeza o bastante para que não fuja. Sorrio ao notar como bate rápido o seu pequeno coração.

- De onde você veio? – Me divirto ao perceber que estou falando com um roedor branco. Antes que eu acabe me apegando a pequena criatura, pego um pote velho que provavelmente já foi um prato um dia e alguns livros em minha mochila e utilizo-os para fazer um lugar seguro onde posso guardar o ratinho e evitar que ele escape, não posso lidar com isso agora, o ritual é a minha prioridade.

De volta à cozinha me sirvo com um pouco de sopa. Odeio essa comida pura, o que eu não daria pra poder comer um bom bife se o ritual permitisse. Eu nunca fui boa de cozinha, então a sopa, além de ser uma comida sem graça, sendo preparada por mim acaba ficando pior ainda, mas também não é nada que eu não possa fechar o nariz e acabar comendo rápido pra não sentir o gosto.

Acabo perdendo a tarde toda me preparando pro ritual, pego bastante lenha pras fogueiras, organizo as ervas e termino de limpar as presas do urso cinzento, acabei ficando o dia todo imersa nessas coisas, nem vi o tempo passar, quando dou por mim o sol já está se pondo. Droga, acabei me esquecendo do ratinho! O bichinho deve estar faminto e morrendo de sede embaixo dos livros. Corro até a cozinha e faço uma pequena tigela pra ele com água e ponho ao lado um pouco dos legumes que sobraram da sopa, não sei nem se ele come isso, mas se não comer também não há nada mais que eu tenha a oferecer. Lembro-me de ter visto uma gaiola de passarinhos em algum lugar, dou uma olhada pelo casebre e não tardo a encontrá-la. Quando sua nova casinha está pronta com água e comida, vou até o lugar onde o deixei e removo os livros que o prendiam. Imediatamente o bichinho corre em disparada para água, não posso evitar me sentir culpada por tê-lo esquecido.

Agora, olhando com mais cuidado, posso notar que há uma pequena tira vermelha de couro presa em seu pescoço. Muito estranho. Decido dar uma olhada e sou surpreendida com algo ainda mais estranho: meu nome está gravado nela. E há também uma mensagem do outro lado. Droga, não posso lidar com esse tipo de coisa momentos antes do último ritual, mas ao mesmo tempo eu não vou conseguir me concentrar se ficar preocupada imaginando o que a mensagem dizia. A dúvida me consome. Passo quase uma hora sentada de braços cruzados olhando para a fita sobre a mesa e para o camundongo assustado no fundo da gaiola.

Chega! Não agüento mais encarar esse papel. Acabo saindo do casebre pra respirar um pouco de ar puro. Observar o campo e sentir a brisa do vento contra o meu rosto sempre me ajudou a colocar as coisas em perspectiva. Olho para as estrelas em busca de uma resposta, quando finalmente desvio o olhar já estou decidida, vou ler logo o bilhete e acabar com isso de uma vez. Não posso fazer o ritual com isso me atormentando e não posso me dar ao luxo de falhar e desapontar Kida, não vou dar esse gostinho a Wolfgart, sei que ele adoraria me ver falhando.

Volto pra dentro do casebre e procuro pelo pouco de luz que ainda me resta, já é hora de acender as tochas ao redor do casebre, essa precisa ser uma noite bem iluminada pelos elementos da natureza. Uma vez que as chamas estão brilhando vamos ao bilhete. Respiro fundo e abro a fita, a primeira coisa que vejo ainda é o meu nome escrito em uma caligrafia bonita, agora vamos a parte que eu não vi ainda, as letras miúdas me deixam tensa: “Pode um vampiro desejar uma lupina?”

- O quê? – Me surpreendo gritando alto o bastante pra assustar até o mais feroz animal da floresta. – Só pode ser coisa daquele maldito coração negro! – Me ouço rosnando baixo tentando recobrar a sanidade que o bilhete expulsou de mim. – Não vou permitir que você estrague o meu momento, seu desgraçado. Você não vai fazer isso comigo! – Atiro a fita longe e volto até o camundongo amaldiçoando Wolfgart e todas as possíveis gerações de sua família.

De volta à mesa sou praticamente obrigada a dar um sonoro tapa em minha própria testa. - Como pude ser tão idiota? - Eu tranquei o ratinho em uma gaiola de madeira, ele obviamente roeu as barras e escapou, no que diabos eu estava pensando? Odeio quando dou esse tipo de mancada. Não importa. Que Wolfgart e seu maldito esquema pra me sabotar vão pro inferno, não vou permitir que eles estraguem o meu ritual. Vou até as minhas coisas, visto minhas roupas ritualísticas, penduro o novo cordão com as presas do urso cinzento no pescoço, queimo as ervas amassadas na tocha mais próxima e me dirijo para o lado de fora do casebre.

No momento em que a porta se abre um enorme homem careca e de pele negra está me aguardando ao lado de uma fogueira do lado de fora. Como não o ouvi chegando e acendendo a fogueira? O que está havendo?

Aproximo-me com cautela, por mais que eu devesse estar preocupada e receosa, não estou. O homem exala uma aura de conforto, sinto uma certa cumplicidade com ele, como se já nos conhecêssemos há muitos anos. O ar em torno dele é leve, carregado de uma seriedade tranqüila e serena, a fumaça da fogueira tem um cheiro bom, me pergunto que tipo de ervas queimam ali dentro. Quando finalmente me aproximo, vejo os dois metros de músculo me encarando com aquele olhar misterioso, ele parece um gigante de ébano saído de alguma historia antiga. Ficamos frente a frente e ele se levanta com os olhos fixos nos meus. Sinto como se seus olhos atravessem a minha alma.

Minha mente se distrai, estou realmente muito à vontade com ele, a ponto de me pegar pensando sobre o fato de a minha altura não ir muito além da de seu peito nu. Talvez se eu ficar na ponta dos pés consiga ver por cima de seus ombros.

Ouço a lenha estalando na fogueira e quando dou por mim estou tão envolvida em seu olhar que não percebi o que se passou, meu corpo está todo coberto por tatuagens tribais negras, me sinto como uma rainha amazona ou algo do tipo, talvez eu realmente esteja destinada a liderar a matilha, mas meus devaneios são interrompidos por sua poderosa voz que ecoa em um tom seguro e calmo:

- Veremos se a princesa está pronta para o trono, está na hora de testá-la.