sexta-feira, 2 de janeiro de 2015

Conflito de Lealdades

Bianca me fez trilhar um caminho especialmente tortuoso para chegarmos ao nosso objetivo. Ela sabe que odeio desvios e caminhos mais longos que não sejam extremamente necessários, mas, mesmo assim, ela insiste em me fazer tomá-los. Inferno, ela sabe exatamente como entrar na minha pele e me fazer seguir o curso dela ao invés do meu.
Então, mesmo após sairmos da cidade, ela me conduziu pelos caminhos mais impróprios e menos trilhados da floresta local. Cada vez gosto menos de pra onde isso está indo. Bianca não atrelaria seu espírito a qualquer menina, ela certamente escolheu alguém especial, a menos que não tenha tido muita escolha, mas, assim como na maioria dos assuntos, dificilmente ela iria me contar algo a respeito caso eu perguntasse. A ideia de que toda e qualquer informação tem que partir dela é algo com que Bianca sempre se identificou e, para meu infortúnio, é também uma característica marcante dos habitantes do mundo espiritual. Somando as duas coisas, bem, vai ser impossível fazer com que ela me diga algo apenas por que eu perguntei, então é melhor apenas seguir calado, por mais que a irritação acabe ficando absolutamente clara nas feições do meu rosto.
Pouco tempo após iniciarmos a trilha, mesmo que pra mim tenha parecido uma eternidade, algo me chamou a atenção. Não algo natural, ou simplesmente algo que eu não esteja acostumado por não ser adepto a pratica de exercícios como trilhas e caminhadas, algo sobrenatural, um chamado. Eu não era o único ali que possuía algum tipo de poder.
Não é do meu feitio atacar toda e qualquer criatura que se aproxime de mim, principalmente em vista do fato de estar afastado desses círculos a tanto tempo. Então apenas me preparei, na defensiva eu teria uma chance de reconhecer o meu atacante, se é que era um atacante, e preparar a melhor tática de contra-ataque. Droga, já não era ruim o bastante ter que ir atrás de uma garota qualquer porque Bianca decidiu prender espírito a ela?
Parando na trilha, procurei em volta pelo espírito e não a encontrei em parte alguma, isso está ficando cada vez pior, não deveria ter deixado que o chamado me desconcentrasse tanto, eu realmente estou enferrujado e isso não é nada bom para mim, para Bianca e principalmente para a menina.
Com uma postura defensiva contra a maior árvore que pude encontrar ao meu redor e a calibre doze em punhos (não importa se você é um mago, um exorcista, anjo, demônio, fada, ou seja lá que diabos você for, dificilmente algo fará mais estrago na sua forma corpórea do que uma calibre doze), esperei que o meu oponente se revelasse... espera, oponente? Foi apenas um chamado porque diabos estou tão pronto pra iniciar um combate? Preciso me controlar melhor ou acabarei cometendo exatamente o tipo de erro que estou querendo evitar.
Com essa ideia em mente, tentei respirar o mais fundo possível e gritei a plenos pulmões: Se você quer falar comigo, eu estou aqui e não estou pra brincadeira. Mostre-se de uma vez! - Não, eu não sou bom em ser cordial, especialmente quando não sei com quem estou lidando.
Alguns sons de passos vieram em minha direção e eu levantei a Winchester pronto para um ataque, mas o mesmo não veio. Ao invés disso, quem apareceu em meio as árvores a frente foi Hank Zaccary, alguém que estava ao meu lado quando… quando eu deixei Bianca morrer.
- Acalme-se, Major. Você não vai querer atirar num velho amigo apenas por receber um chamado, não é? - Disse o homem saindo da mata, o bastão de carvalho a sua frente, as vestes negras em torno do corpo esvoaçando em suas pernas sem deixar nada do que estava dentro delas a vista, o chapéu de aba escondendo suas feições e a voz que, por mais que tivesse um tom apaziguador e ameno, ainda me causava calafrios.
Eu não pude evitar um sorriso enquanto abaixava a calibre doze. - Hank, achei que faria frio no inferno antes que voltasse a vê-lo, meu amigo. - O reencontro era realmente uma surpresa tão agradável quanto inesperada, ao menos esse foi o meu primeiro sentimento a respeito. No caminho para abraçá-lo, um pensamento me veio em mente: primeiro o espírito de Bianca me procura e faz com que eu inicie uma jornada por sua alma, (Não, os outros motivos não são os meus, são os dela e, mesmo que eu jamais vá admitir isso em voz alta, o meu é apenas reparar a minha falha com ela), agora, Zaccary aparece diante de mim? Se isso não é um grande sinal de problema, eu não sei o que é.
Hank percebe minha exitação e decide me encontrar no meio do caminho. Apesar de abaixada, a Winchester ainda está nas minhas mãos. Ainda há alguns passos de distância, ele reinicia o diálogo:
- Velhos hábitos não morrem fácil, hã? Ainda não confia em nenhum membro do Conselho? - Um pequeno sorriso, não tão sincero, aparecia em seus lábios com as palavras.
- Usuários de magia que se acham superiores aos demais mortais e não interferem em assuntos sobrenaturais a menos que lhes afetem diretamente? Definitivamente não. Eu me afastei por um motivo. -  Minhas palavras são duras, mas merecidas o Conselho de Magos nunca moveu uma palha a meu favor, mesmo quando a vida de inocentes, como Bianca, estivessem envolvidas.
Mesmo sobre a sobra do chapéu, um leve brilho incandescente passou por seus olhos. Meu comentário não passou despercebido.
- Direto ao ponto como sempre, Major. Achei que poderíamos ter uma conversa civilizada como velhos amigos antes de falarmos de negócios. - Agora o rosto dele estava levantado, os olhos penetrantes fixos nos meus, as feições envelhecidas duras com seriedade e a barba feita deixando visíveis as marcas do tempo.
- Com Hank Zaccary, meu amigo e antigo companheiro eu sempre teria tempo para uma conversa amigável há muito atrasada, mas com um agente do Conselho, me convocando com magia e se apresentando em vestes formais, bem, com esses a minha Winchester tem mais a dizer do que minha boca. - Por dentro eu estava rezando para que minhas proteções estivessem em dia, eu não renovava os rituais há muito tempo e esperava nunca ter de fazer isso novamente, aparentemente eu estava errado novamente, mas jamais deixaria que Zaccary se quer suspeitasse disso.
Hank não se moveu bruscamente, apenas deu um passo pra trás deixando que o bastão de carvalho, com mais runas inscritas do que eu me lembrava, (o maldito se manteve bastante ocupado enquanto eu me afastei), ficasse exatamente a sua frente, como uma barreira de proteção. - Ainda não há necessidade de guerrearmos, exorcista. - A palavra veio carregada com um tom perjorativo, o Conselho não lida muito bem com aqueles que lhes viram as costas, e Zaccary tomou meu afastamento como algo pessoal.
- Se você diz que “ainda” não há necessidade, quer dizer que veio atrás de mim procurando por isso, diga o que quer de uma vez, Zaccary. - Eu respondi bufando. Certamente o fato de chamá-lo pelo sobrenome, como fazemos em meios formais, assim como a trava da minha arma sendo liberado, não passaram de forma despercebida, um círculo se folhas ao redor de Hank pegou fogo enquanto o mesmo murmurava algo em latim ou em qualquer outro idioma que eu jamais saberei qual é.
- Se é assim que quer conduzir as coisas entre nós, que assim seja. - Ao falar ele bateu a base do bastão no chão fazendo com que o círculo se acendesse. - O Conselho de Magos o acusa de interferir com assuntos do meio espiritual, assistir na fuga prisioneiros de guerra entre os planos e assassinar três seres místicos. O que tem a dizer em sua defesa.
Minha vontade foi de disparar a Winchester imediatamente, mas, além de ele ser alguém que conheço e costumava considerar um amigo, o choque das palavras me deixaram completamente atordoado. Mesmo com o nosso passado, como diabos Hank tinha a coragem de me acusar de assassinato? Apesar de todas as nossas diferenças, sempre tivemos um grande respeito um pelo outro, ele só me acusaria de algo assim se tivesse provas incontestáveis de que eu seria culpado, o que é totalmente impulsivo, uma vez que eu se quer faço ideia do que ele está falando.
- Hank, eu não faço ideia do que você passou durante esse anos, mas o que diabos você pensa que está dizendo? Será possível que você não percebe o absurdo do que acaba de dizer? Por mais que o conselho tenha deturpado a sua percepção da realidade, pelos deuses.. você ficou completamente louco? - Minha reação o deixou quase tão surpreso quanto eu mesmo estava. Ele sabe que eu jamais mentiria pra ele em algo assim, mas, ao mesmo tempo, ele tinha o um dever para com o maldito Conselho. A expressão de surpresa em seu rosto deixou claro o conflito de lealdades dentro dele. Acreditar em um velho amigo, ou na verdade do Conselho?
Apesar da perplexidade estampada no rosto, Hank conseguiu manter a voz indiferente: - Essa é a sua defesa? É tudo o que tem a dizer? - E lá se foram os anos de amizade e companheirismo, a lavagem cerebral do Conselho de Magos venceu.
Eu suspirei e ainda relutante com o quanto meu amigo havia sido dominado disse: - Eu sou inocente e você deveria saber melhor do que me fazer dizer isso, deveria ser óbvio! Que inferno, eu não sei o que o Conselho fez com você, mas nos conhecemos há um longo tempo, você deveria saber que eu jamais admitiria algo tão absurdo. Nós costumávamos combater exatamente esse tipo de ameaça e agora você me acusa de ser a ameaça? Será que o Conselho deixou algum resquício da sua personalidade?
Com um outro suspiro ele também respondeu: - O Conselho dos Magos possuí provas de seu envolvimento e de sua culpa, a ordem pela sua cabeça foi dada, eu tomei pra mim a responsabilidade de vir atrás de você justamente pelo nosso histórico e pra lhe dar a chance, com uma vã esperança, de que você pudesse refutar as acusações. Minhas esperanças se provaram falhas, talvez a noção de que o nosso passado iria interferir no nosso julgamento seja o que impulsiona esse teatro demoníaco. Mas sejam quais forem as suas motivações e planos, eles terminam aqui e agora. Essa é a sua ultima chance de se render e justificar suas ações perante o Conselho. Caso contrário, não só seus planos, mas sua vida, terminam aqui e agora. - Apesar da dúvida clara em seu coração, Hank Zaccary era agora apenas um agente do Conselho, o confronto era inevitável.
Por mais rápido que o bastão dele pudesse se mover para disparar algum tipo de conjuração sobre mim, eu só precisei levantar a calibre doze e puxar o gatilho. Enquanto o disparo penetrava sua carne destruindo boa parte de seu torço, deixando na floresta ao nosso redor uma enorme mancha de sangue coberta de pele e restos humanos, o cajado escapava de suas mãos caindo ao lado do restante do corpo. Um humano normal teria morrido instantaneamente, mas Hank não era só um humano, ele era um mago, um membro do Conselho, o que quer dizer que ele possuía poder o bastante pra enfrentar e resistir a quase qualquer coisa sobrenatural que fosse jogada contra ele, mas não ao disparo de uma calibre doze. Disparar uma arma nunca me doeu tanto.
Com o baque do corpo e do cajado no chão coberto de folhas eu corri até o corpo do meu amigo caído. Com os olhos repletos de lagrimas e segurando sua cabeça no meu colo, eu ouvi suas ultimas palavras: - Bianca.. Depois da morte dela.. Você mudou.. - Suas palavras eram entremeadas com tosse e golfadas de sangue. - A morte dela.. não justifica a morte de inocentes… Você costumava saber disso… Eu falhei por acreditar que você ainda era o homem ao lado de quem eu lutei… Eu falhei por acreditar que poderia trazê-lo de volta pra luz… - Essas foram as ultimas palavras de Hank Zaccary, fodam-se os títulos, foda-se o Conselho, ele era meu amigo.
Repleto de pesar e tomado por um sentimento de vingança, eu fechei os seus olhos enquanto as lágrimas marcavam meu rosto. Meu amigo morreu pelas minhas mãos acreditando que eu era um assassino. Agora eu iria caçar os responsáveis. Nada mais importava, eu iria fazer justiça. Usando o cajado dele para me reerguer eu disse apenas: - Eu não sei quem te levou a isso, mas, seja quem for, eu vou te vingar, nem que isso me custe a vida, eu me recuso a perder mais um amigo pela falta de senso do Conselho. Agora é pessoal!
Quando o efeito das mágicas que mantinham o espírito de Bianca afastado passasse, eu teria que explicar a ela o que acontecera e como mais um dos nossos companheiros havia morrido, dessa vez pelas minhas mãos. Esse sangue jamais seria lavado, mas definitivamente ele seria vingado!