sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012

O Ultimo Forte Elfico

A tarde chegava ao fim e a turba finalmente invadira o Forte do Carvalho. O cheiro de queimado se espalhava por toda a terra devastada. Todos os povoados próximos a floresta já podiam avistar a fumaça negra que se erguia da pira que um dia fora uma fortaleza élfica detentora de magia e poder.

Devia faltar pouco agora, ou ao menos assim ele pensava. Aqueles homens não poderiam ser loucos o bastante para ficar tão a vista na floresta durante a noite e esperar sobreviver. Todos sabem que tipos de seres atravessam aquelas matas ao cair da noite.

O elfo tentou se levantar, mas o corte em suas costas era profundo de mais para isso e a flecha em seu ombro trouxe imediatamente a memória de como ele fora parar ali. Vencido pela dor e pelo conhecimento que lhe dizia que era impossível sobreviver àqueles ferimentos, o elfo optou apenas por observar os momentos finais de seu antigo lar enquanto o sangue escorria para fora de seu corpo e os sentidos começavam a lhe faltar.

Ao menos ele morreria com honra, mantivera sua espada em punho e a levaria a herança de sua família consigo para o outro mundo. Sua morte não seria lembrada. Não fora um herói épico. Apesar de sua brava morte defendendo seus irmãos em uma batalha que há muito já estava perdida, a história é escrita pelos vitoriosos, e nenhum deles se importaria com o guerreiro que lutou contra eles e derrubou cinco de seus homens antes de ser derrubado. Não, na história dos homens não havia lugar para um herói élfico.

Com esse triste pensamento em mente, o elfo se preparava para fazer sua passagem para o outro mundo, mas, ao que parece, o universo ainda tinha uma ultima surpresa para ele antes de sua partida. Um guerreiro humano que vasculhava o campo em busca de feridos o encontrou. Sua armadura, coberta de sangue e fuligem, não mais brilhava com o crepúsculo, a espada em punho pingava com sangue de dezenas de oponentes, dezenas de elfos que morreram defendendo o seu lar. Devido à posição do sol por de trás do homem, era impossível ver o seu rosto, mas o som de sua voz rouca atingiu o elfo como um trovão.

- Como se sente, elfo imundo? Acha que ainda pode ser um bom desafio para minha espada? – Aquela voz era conhecida, aquela fúria vingativa só poderia vir de um homem.

- Creio que não, velho companheiro. Não poderei mais participar de sua cruzada sanguinária. – Disse o elfo recusando-se a responder ao desafio.

O homem aproximou a ponta da espada da garganta do elfo, mas, ainda assim, não obteve reação alguma. Não haveria um ultimo combate, não com aquele elfo.

- Sua era finalmente chegou ao fim. É o momento de homens tomarem o que é seu por direito.

- Esta terra nunca foi sua. Os homens ainda são muito imaturos, não estão prontos para governar este mundo ou qualquer outro. Era o papel dos elfos ensiná-los a sobreviver e a cuidar da terra. Mas em seu ímpeto incansável vocês nos destruíram e condenaram a todo o planeta no processo. – A voz do elfo agora se tornava cada vez mais fraca. - Vocês simplesmente ainda não estão prontos.

- Não, elfo. Vocês pregam a segurança do mundo para manter o domínio da magia. Vocês escravizaram o nosso povo com esse poder. Eu perdi dois filhos para o seu povo. E na audiência onde busquei justiça, - A voz do homem, outrora onipotente e poderosa como um trovão, agora se enchia de mágoa e dor. O elfo não podia enxergar suas feições, mas tinha certeza de que lagrimas desciam de seus olhos. - Só o que você me disse, foi que meus filhos tentaram conhecer o proibido e que os elfos não poderiam permitir que o balanço do universo fosse perturbado. Mas isso não é verdade. A verdade é que não foi por isso que meus filhos morreram. – A tristeza agora se tornava fúria e o elfo sentia o som da morte se aproximando nas palavras daquele homem. Ele não teria tempo de morrer por suas feridas. Aquele era o homem que daria fim a sua vida, o homem que ele acreditava ser destinado a viver toda sua vida apenas um camponês responsável por cultivar terras. – Os meus filhos morreram, porque descobriram o seu plano, elfo. Meus filhos morreram, porque viram as armas mágicas de destruição com as quais vocês destruiriam a todo o meu povo!

A fúria do homem fazia com que a espada tremesse em sua mão. A qualquer momento ele poderia enfiá-la na garganta do elfo e terminar aquilo. Mas sua mágoa era grande e terrível de mais para ser aplacada pela morte, ele queria entender algo que o elfo julgava impróprio para a mente humana. Ele queria entender os preceitos da magia.

- Diga-me, por que vocês possuem um desejo tão grande de morrer? Não entendem que com a morte dos elfos o seu destino está selado? Os homens são impetuosos e arrogantes de mais para manipular a magia, por isso não a demos a vocês. Homens agem com emoção, atacam mesmo quando sabem que a luta está perdida. Suas vidas são sacrificadas por nada todos os dias e você deseja culpar os elfos por matar aqueles que poderiam condenar a todos. – A voz do elfo agora se recuperava um pouco, ele se sentia ultrajado com as acusações do homem. E, mesmo a beira da morte, ele não poderia permitir que o orgulho de sua raça fosse tratado daquela forma. - Não, humano. Vocês não estão prontos para viverem sozinhos!

Tomado pela fúria, o homem levantou o elfo do chão imprensando-o contra a árvore e deixando seus rostos a uma respiração de distancia. A dor percorreu todo o corpo do elfo ao ser levantado, mas não importava mais, já era hora de morrer.

- Entenda de uma vez, elfo! Nós não precisamos de sua magia para sobreviver. Vencemos essa guerra justamente por conta de nossas emoções. Vocês sempre julgaram que, por sermos menos numerosos e não termos acesso a magia, jamais iríamos nos impor e nos lançar num combate contra vocês. Esse foi o seu maior engano. Os anos que posaram como nossos algozes nos deram a força que precisávamos para virar o seu jogo. Vocês nos deram a força que precisávamos através de nossas tristezas e, agora, finalmente estamos livres de vocês. Avise ao seu deus que este mundo agora é nosso e que os nossos filhos serão vingados! – Com essas palavras, o elfo sentiu a espada do homem atravessando seu peito e rasgando suas entranhas. Seu corpo se tornou frio, seus sentidos desapareceram juntamente com sua consciência e a espada de sua família agora jazia no chão, aos seus pés, com o sangue daquela que a empunhava escorrendo sobre ela.

Era o fim, as emoções humanas triunfaram sobre o conhecimento dos elfos. Uma nova era se iniciava...

domingo, 22 de janeiro de 2012

Elos

“... e ele também não era o que eu procurava, ainda estava abaixo das minhas expectativas.

Mas a busca não foi de todo perdida. Deparei-me com uma estranha atividade Lupina nos arredores da cidade, e por algum motivo, não consigo tirar da minha cabeça a jovem lupina do grupo.

Arkon Draine.”

Coloco a caneta ponta de pena na gaveta da mesa e me espreguiço, é um velho hábito. Por um momento volto minha atenção para a lupina, desta vez conscientemente. – O que ela fazia lá? – Falo olhando para o teto. O velho ventilador está parado a tanto tempo que as pás estão cobertas de teias. Estou certo de que não se tratava de uma simples caçada. O grupo não levava carne ou peles. Lembro com nitidez do último momento em que a vi. – O que você fazia lá? – Pego o diário sobre a mesa e o tranco na gaveta.

Olho para a janela, um luzir contra o vidro empoeirado me alerta que já é dia. Abro as cortinas e observo a rua. Se fosse em qualquer outro lugar eu estaria recolhido a escuridão, mas não aqui, não nesta cidade. A penumbra que envolve a cidade é como uma segunda pele, ela sempre está lá, é por isso que os postes nunca se apagam completamente. Não posso me expor diretamente à luz do dia, mas já é um começo.

Do outro lado da rua vejo um homem parado observando o antiquário. A mesma pessoa da noite passada. Cabelos curtos, casaco preto, mãos enterradas nos bolsos e um cigarro na boca. Há algo errado acontecendo. Pego o sobretudo no cabideiro e olho a cama arrumada, faz dias que não a uso e ela parece convidativa, ainda que isso não passe de mais um hábito.

Corro para as escadas e logo estou no primeiro piso, na loja. Sinto um frio crescente. O mais estranho é que o frio é uma situação comum pra mim, mas desta vez fico incomodado. Paro e observo o interior do antiquário, as peças mais exóticas estão trancadas em armários de vidro reforçado, e as mais misteriosas em um compartimento secreto. Por todos os lados há mercadorias: cadeiras, mesas, tapeçarias, roupas, em fim, um pouco de tudo.

A sineta da porta de entrada toca. Alguém está tentando entrar. Vou até a frente da loja e vejo Victorio por uma das janelas. Fico de mau humor instantaneamente. Abro a porta.

– Precisamos conversar, Draine. – O velho é direto. Dou uma olhada para os lados e o mando entrar com uma das mãos. O homem ainda está parado do outro lado da rua. Sinto o cheiro de encrenca. Tranco a porta e coloco a tabuleta de “fechado” na janela.

– O que está havend... – Ele estende a mão para que eu me cale. Não é próprio dele. O velho é irritante e até presunçoso a maioria das vezes, mas nunca tolo a ponto de me destratar sem um bom motivo.

– Draine, você sabe que estou saindo. – Ele caminha até a janela e fecha as persianas. – Estou arriscando muito em vir aqui, mas... – Ele se vira e me encara com um olhar sério, daqueles que só se vê em pessoas de caráter muito forte. – O Senhor da cidade está recrutando, Draine. – Ele senta em uma velha cadeira de balanço da época da guerra civil.

– Do que você está falando, velho? – Ele levanta o braço novamente, seus olhos verdes, quase brancos de tão claros, percorrem o ambiente apressadamente. Nunca o vi tão assustado.

– Você o conhece bem, Draine. Ele acredita que uma velha profecia está para se cumprir. Por isso está arregimentando... – Ele tosse e tira um lenço branco do casaco, quando afasta o lenço da boca vejo uma mancha vermelha e imediatamente sinto o distinto cheiro do sangue humano.

- Calma aí, meu velho. – Pego um copo com água na pequena geladeira que mantenho na loja para atender os clientes mais exigentes, aqueles que levam horas para se decidir e escolher. – Tome. – Ofereço. – O que você está falando não faz o menor sentido. Se Mikael tentar fazer isso, a sua organização vai transformar a vida de todos em um pandemônio. E isso não será bom para nenhum de nós. – Vic me ouve enquanto bebe um gole curto.

– Draine, escute. – Ele faz uma pausa para respirar. – Ele virá atrás de você. Ele conhece o seu potencial. – Agora eu fico realmente confuso, que história é essa de “meu potencial”? – Mikael teme ser destituído. Ele acredita que um “antigo” está para despertar. Outros já estão se mobilizando, não são apenas os vampiros. Guardiões, Lupinos e outros licantropos... – Ele tosse outra vez.

– Por que está me contando tudo isso, Vic? – Pergunto secamente, a final os Guardiões não se interessam pessoalmente por nenhum de nós. Vic parece controlar a tosse e me olha diretamente nos olhos.

– Escute, garoto. – Ele esquece que sou muito mais velho do que ele. Os mortais freqüentemente fazem isso. – Não é certo, mas gosto de você. Sei que não é essencialmente “mau” como a maioria dos outros. Sei também que você vai fazer a coisa certa quando chegar à hora... – Outro acesso de tosse. Pra piorar esse sentimentalismo todo está me irritando, principalmente porque eu já não sei se odeio mais o velho, ou o fato dele estar tentando me ajudar. Aproximo-me de Vic.

– Você está enganado. Eu sou muito pior do que qualquer um que você já conheceu. – O desgraçado não só me olha direto nos olhos, como ainda da um leve sorriso. Não sei por que não o mato ali mesmo.

– Talvez você realmente acredite nisso, Draine. Mas a verdade é que você se importa. – Ele sorri e, antes que eu possa falar, continua. – Você viu aquele homem do outro lado da rua? Ele está aqui para recrutá-lo. Está esperando o momento certo. – O celular dele toca. - Hmm. Parece que a minha carona está chegando. – Ele se levanta. – Tente ser legal com Brian. Um dia ele pode salvar a sua vida.

- Brian? – Pergunto, mas a resposta vem imediatamente a minha cabeça. – O seu parceiro.

- Não, Draine. O meu substituto. Ele já está pronto. Apenas um pouco verde. – Ele destranca a porta e sai tossindo. Acho que essa é a última vez que o verei. A porta se fecha e eu cerro os punhos. Mas que diabos, vou mesmo sentir falta desse maldito. Ele sai me deixando muito no que pensar.

Vou até a janela e olho entre os frisos das persianas. Vejo Vic entrando no velho Chevrolet 56 com Brian segurando a porta pra ele. O novato fecha a porta e corre para o outro lado do carro, uma longa franja se desprende do penteado e cai sobre o rosto. Olho bem para o garoto tentando memorizar as suas feições. Enquanto eles se afastam, vejo o homem do outro lado da rua. Quando carro dos guardiões se distância, o homem olha os sinais de trânsito e atravessa o cruzamento em direção ao antiquário.

Fico intrigado, e espero para ver o que ele vai fazer. Sento na velha cadeira de balanço que Victorio deixara de frente para a porta e espero. Em instantes uma sombra assoma nas janelas e logo desaparece atrás da pesada porta de carvalho do antiquário. Ele tenta a maçaneta, mas eu deixara a porta trancada. Faço menção de me levantar para abrir, mas para a minha surpresa a tranca começa a se mexer. O desgraçado está forçando a minha fechadura. Me contenho e fico sentado no escuro com os braços apoiados nos joelhos e a cabeça baixa, olhando entre as mechas de cabelo, para a porta. Um estalo e ela se abre, ele empurra a porta como se estivesse entrando em sua casa. A vontade de dragá-lo para as sombras do antiquário é muito grande, eu espero que ele se vire para mim. Assim que o homem me vê da um passo atrás e faz menção de ir embora.

- Já vai? – Pergunto arrastando as sílabas. Ele corre para fora. Lembro das palavras de Vic. Se ele queria apenas falar comigo, por que invadir a loja e por que diabos saiu correndo. Abro a porta e vou andando decidido, direto para o desgraçado.

Um carro buzina, outro freia forte e o som faz as poucas pessoas na rua olharem para o cruzamento. Atenção era tudo o que eu precisava. Para me deixar ainda mais irado, uma brecha se abre rapidamente na penumbra e, por um segundo o sol me banha, sinto a pele queimar como o inferno, isso vai demorar a cicatrizar. Um fumegar leve pode ser visto saindo do sobretudo. Vejo o homem correndo em disparada rua acima, em direção ao centro. Posso alcançá-lo com facilidade, mas deixo que se afaste um pouco. Quando ele vira a esquina e já se sente seguro, pára pra tomar fôlego. É ai que eu o pego e empurro para uma ruela transversal repleta de caçambas de entulho e lixo. Lugar bastante apropriado.

- O que você quer comigo? – Pergunto de forma ameaçadora entre os caninos, aproximando meu rosto do dele. O coitado arregala os olhos. Acho que ficou mais assustado com o rosto queimado, em carne viva do lado direito, do que com as presas a mostra.

- Eu... Eu... – Ele tenta falar enquanto o seguro um palmo acima do chão com um único braço. Acho que exagerei, ele é só um vassalo. – Meu... Meu Mestre pediu para en... Entregar... – Ele ia tirando apressadamente um envelope do casaco. Arranco da mão dele e o rasgo com a boca, tirando em seguida o conteúdo para ler.

Assim que vejo o lacre Real começo a acreditar na história de Vic. Fico pasmo e solto o vassalo, ele não corre, seria tolice. O rapaz se ajeita enquanto leio a “convocação”.

- Agora você parece estar entendendo. – O rapaz começa a falar de forma articulada e segura. – Meu Mestre quer você presente no Neo Plaza às... – Agora ele perdeu completamente a noção do perigo. Agarro a garganta do infeliz e o suspendo novamente. Um pingente pula fora do casaco preto, a figura de um dragão ocidental.

- Moleque, com quem você pensa que está lidando? Seu vermezinho imundo! –Aproximo minha boca de seu ouvido. – Você gosta disso? – Pergunto em um sussurro realmente baixo. – Gosta da sensação, gosta de servir de comida pros imortais? – Ele não responde. Como a maioria dos mortais apenas arregala os olhos. Atiro-o no chão. – Diga ao seu Mestre que já paguei as minhas dívidas com ele.

- Ele... Ele não vai gostar de... – Ele começa a falar com a voz entrecortada pela falta de ar. Eu cerro os olhos e mostro as presas, guinchando para ele com os braços abertos. É um velho truque que sempre funciona, dessa vez não foi diferente. O vassalo se cala e corre como se o diabo estivesse em seu encalço.

Observo o homem correr pela rua, assim que está fora de vista abro minha mão e observo o pingente que roubei sem que ele percebesse. Um pequeno dragão de bronze com um minúsculo rubi no lugar do coração.

- Hellen. – Volto para o antiquário a passos largos, tentando imaginar o que realmente está acontecendo. Primeiro a estranha visita de Victorio, depois a convocação, e agora isso, Hellen D. Hart. Começo a imaginar se a final Vic estava certo e não apenas ficando senil.

Quando chego à loja escuto um som estranho. Abro a porta cuidadosamente imaginando quem poderia ser tão azarado a ponto de ter escolhido justamente a minha loja para roubar. Entro sorrateiramente e me esgueiro entre as peças à venda. O som agora é um zumbido baixo e parece vir de trás do balcão. Corro e em um segundo estou do outro lado. Esperava encontrar alguém escondido, mas percebo que o som vem de trás da estante.

No balcão, aciono o dispositivo no chão, a prateleira atrás de mim se abre revelando itens raros e valiosos. Minha atenção é imediatamente capturada por uma velha espada de gume duplo, a Espada Sicária, uma relíquia do Oriente Médio. A lâmina reluz em um sinistro tom vermelho, quase imperceptível.

A maior parte do que se fala sobre magia e objetos encantados, no mundo mortal, nunca passou de especulação. Ver a espada reluzir me lembra que existe muita magia entre os mundos. Se eu já não fizesse parte das trevas, certamente estaria a ponto de mergulhar nelas.

Curioso, empunho a arma, ela não é muito comprida nem pesada. Tenho uma sensação de poder, só de tela nas mãos. Mas por que só agora ela “despertou”? Pondero sobre os últimos acontecimentos e uma sensação ruim parece me engolir.

Passo o resto do dia debruçado sobre livros. Um dos lados positivos de se ter um antiquário é possuir uma vasta quantidade de informação datada de épocas remotas. Vic falou sobre uma profecia, se existir algum registro em minha coleção eu vou encontrar.

Já são quase vinte e uma horas quando a sineta da porta começa a tilintar insistentemente. Será que ninguém olha para a placa de “fechado”? Deixo os livros no estúdio e desço pra loja. Assim que chego à porta vejo a silhueta de uma figura corpulenta contra a janela e ouço um som que lembra um cachorro farejando.

- Abra logo essa porta, Draine! – A voz ordena, imperativa como o estrondo de um trovão. – De todos que conheço talvez este seja aquele com que eu me dê melhor, apesar de tudo em nós dizer que deveríamos ser inimigos mortais. Destranco a porta reconhecendo a voz.

- O que você quer, Orion? – Pergunto enquanto abro a porta. Orion me fita por um instante com um certo espanto nos olhos. Levo a mão ao rosto, já havia esquecido o ferimento.

- Você está horrível, Draine. - O gigante negro passa por mim, quase me empurrando. Se fosse outro eu já teria perdido a paciência.

- Há muita coisa acontecendo, e um morcego como você pode precisar da ajuda de alguém como eu. – Ele fala piscando um olho e mostrando os dentes em um largo sorriso.

- Para um lobo velho, você até que late bastante. – Retruco em tom de brincadeira. Esse deve ser o primeiro momento agradável dos últimos dias.

Orion é bastante semelhante a mim na maneira de vestir, mas acho que o sobretudo preto cai melhor em mim, nele as canelas ficam aparecendo.

Ele vai atravessando a loja, direto para as escadas nos fundos, que levam ao apartamento. O careca se sente em casa.

Em instantes estamos na sala, Orion saca uma garrafa de vinho no bar e se joga no sofá colocando as pernas sobre a mesa de centro. Arranca a rolha com os dentes e dá um longo gole. Paro próximo a ele e sento em um dos bancos altos do bar. Abro uma garrafa de vinho e me sirvo de uma generosa taça, é claro que prefiro a olfação à degustação.

- O que você está sabendo? Faz dias que eu não o vejo. – Antes de me responder Orion põe a garrafa de lado e me olha com atenção. Os olhos castanhos, quase negros, fitam diretamente os meus, parecem procurar a minha alma, mas essa é uma tarefa fadada ao fracasso, não há nada para se encontrar.

- Draine, tem uma guerra ai fora. Os morcegos estão varrendo todas as zonas da cidade em busca de aliados.

- Até mesmo a zona lupina? – Pergunto em tom irônico.

– Eles que se atrevam! - Orion responde rangendo os dentes. – Os Lupinos não os ajudariam. Nem mesmo se tivéssemos um inimigo em comum. Não se pode confiar em um chupador de sangue. – Fico com uma expressão séria. – Pare com isso, Draine. Você não é como eles.

– Você tem razão, eu não sou como eles. – Respondo secamente, mas, ainda assim, Orion sorri. – Eu sou o pior deles. – O gigante de ébano assume uma expressão séria antes de falar.

– Sim, pode-se dizer isso. – O clima fica tenso por alguns instantes. – Mas, ainda assim, confio em você, Draine. – Ele se recosta melhor no sofá. – Nós já protegemos as costas um do outro antes, e você nunca me decepcionou.

– Por outro lado você me atravessou com uma barra de aço, quando estávamos no bairro asiático. – Falo com naturalidade. A confiança de Orion tem um grande valor pra mim. Ele é um ancião de seu povo, e um dia, isso pode salvar a minha “vida”.

– Essa foi à única forma de acertar aquele seu maldito mestre licantropo! – Ele gargalha. – O maldito cego podia ver melhor do que eu em plena luz do dia, em um campo aberto. – Concordo com a cabeça. Kio era realmente formidável, apesar de ser um louco. Ele havia me treinado pra depois tentar me matar em, segundo ele, uma luta justa com um oponente a altura. Quem disse a ele que eu luto limpo? Que o inferno o tenha.

– Você não veio aqui apenas pra me proteger. O que você quer, Orion? – Pergunto enquanto sinto o delicado aroma do vinho, cuja safra era 1969, um bom ano para as vinícolas.

– Droga, Draine! Por que você sempre acha que há algo mais? – Ele pergunta de forma tão espontânea que eu quase acredito, quase. Coloco a taça sobre o bar e olho para ele de forma questionadora. – Está bem! Certo! Você venceu! – Ele fala claramente transtornado. – Preciso da sua ajuda. – Imediatamente penso que ele também pode me ajudar.

– Do que você precisa, Orion? – Pergunto sem pensar.

– Toda essa movimentação é perigosa para o meu povo. Os vampiros de zonas opostas estão se unindo. Você tem influência na cidade. – Ele faz uma pausa. Já imagino o que ele quer, e sei que não vou gostar. – Preciso saber se eles estão se preparando para lutar contra o meu povo, ou se isso se limita ao domínio da cidade. – Ele está sério, parece preocupado, e deve estar mesmo para me pedir algo assim. Orion sabe melhor do que ninguém que eu lutei muito para sair desse meio de tramas e traições, e agora ele me pede para voltar.

Levanto-me e vou até a janela, as luzes na rua estão acesas e brilhando em toda a sua intensidade, exceto aquele maldito poste perto de praça, ele continua piscando.

– Se eu fizer isso por você. – Sussurro observando a rua. Orion ergue uma sobrancelha de forma interrogativa e coloca definitivamente a garrafa de lado. – Você terá que me fazer um favor antes. – Ele levanta vem até o meu lado e, também observando a rua, pergunta.

– O que você precisa, Draine?

Encontrar uma pessoa. – Ele me olha descrente.

– Você, precisa de ajuda para encontrar alguém? – O gigante coça a cabeça. - Isso é novo. Quem é o infeliz?

– Eu não desejo mal a ela.

– Ela. Entendi. E quem seria ela?

– Uma lupina. – Orion arregala os olhos, fica tão assombrado que o branco dos olhos chega a destoar em sua face. Espero que ele se recomponha antes de continuar. - Noite passada estive na mata e vi uma lupina correndo no meio de uma alcatéia, ela tinha cabelos longos e olhos castanhos mais brilhantes que já vi, pele clara, quase angelical e corria descalça. – Ele cerra os olhos como quem não gosta do que está ouvindo e volta observar a rua.

– E por que você quer encontrá-la?

– Porque, porque... – Eu olho para Orion de maneira questionadora e ele retribui da mesma forma. – Eu... Eu não estou certo. Mas não se preocupe não lhe farei mal algum. – Ele me observa com se estivesse analisando um ladrão em um interrogatório.

– Está pedindo muito, Draine. – Ele responde secamente, não é próprio dele.

– Você sabe de quem estou falando, não é?

– Sim, eu sei... – Ele começa a responder, mas eu o interrompo.

– Nós protegemos as costas um do outro, não é? – O gigante cerra novamente os olhos e parece, mais uma vez, buscar a sinceridade dentro de mim.

– Se eu lhe disser o que quer saber, você terá que jurar não fazer nenhum mal a ela e se empenhará ao máximo em me ajudar...

– Feito. – Respondo de imediato, sem pensar nas conseqüências. Até eu me surpreendo agora. Orion me analisa por mais alguns instantes antes de pedir para nos sentarmos. Ele me diz onde posso encontrá-la e mais, ele me diz quem ela é. É a minha vez de ficar assombrado.

Por: Alessandro Dantas