domingo, 17 de outubro de 2010

Estrelas no Céu


Posso sentir cada músculo do meu corpo congelando quando as palavras dele ecoam em minha mente. Não importa o quão preparada eu ache que estou, só terei certeza quando for testada. Então, com toda a coragem que possuo eu dou um passo a frente e olho nos olhos dele:

- Eu estou pronta para o teste. – Eu esperava que minhas palavras fossem sair tremidas, mas meu tom é sincero e decidido. Espero que ele também tenha entendido dessa forma.

O gigante de ébano sorri, se é que se pode chamar aquele movimento minúsculo dos lábios dele de sorriso. A única coisa entre ele e eu são as chamas da fogueira que queima a minha frente. De repente, ele se senta e continua a me encarar, as chamas diminuem até pouco abaixo da altura de seus olhos. Não sei como ou por que, mas tenho a certeza de que eu devo repetir o gesto, então me sento também com as pernas cruzadas. Nossos olhos se encontram e eu novamente me sinto segura, de alguma forma é como se fôssemos velhos amigos que se reencontram e estão dividindo histórias ao redor da fogueira.

- Descruze as pernas, jovem princesa. Hoje suas energias devem correr livres por seu corpo. – Por mais que as palavras em outro momento pudessem parecer duras, agora me soam apenas como um bom conselho de um amigo mais velho. E é claro que eu devia me lembrar disso.

Obviamente eu obedeço e fico abraçada às minhas pernas. Parte de minha consciência me diz para me desculpar, mas minha intuição deixa claro para mim que esse tipo de palavras não são necessárias entre nós dois.

O silêncio se faz mais uma vez presente, os únicos sons são o vento soprando entre as árvores e a lenha estalando na fogueira. Os olhos dele não desgrudam dos meus nem por um segundo; pergunto-me o que ele estará vendo? Subitamente, ele começa a falar.

- Vou lhe contar uma história, jovem princesa. A história do nosso povo. – Sinto meu coração palpitar de alegria por ele dizer “nosso povo”; ser considera como uma igual por alguém do porte dele é, com certeza, algo de se ter orgulho. – Quando os antigos deuses criaram o mundo, os mortais e os lupinos cresceram separados, enquanto eles montavam suas cidades e se preocupavam com suas guerras religiosas, nós vigiávamos da floresta. O homem, um dia, já soube sua origem; já deu valor à floresta, pois ela sempre esteve aqui para alimentar e proteger a ele. A floresta nada mais é do que a vida do planeta e essa, sim, é a maior das manifestações divinas, a vida. Então, nós, os lupinos, assumimos o dever de proteger a vida que os humanos abandonaram. – Ele faz uma pausa. Suas palavras penetram minha mente com total naturalidade, como nenhum professor jamais conseguiu fazer. Até porque nenhum professor tentou me contar sobre as minhas verdadeiras origens.

Meus pés em contato direto com a terra me fazem sentir ainda mais à vontade com a história, como se eu realmente fosse parte da vida do planeta. Ele parece saber o que se passa em minha mente:

- Deite-se, jovem princesa. Deixe que as grandes forças da natureza se unam ao seu corpo e partilhem comigo o prazer de narrar o restante da história.

Novamente eu obedeço e sinto minha pele se aconchegar na terra. De fato tenho a mesma sensação de quando era criança e me deitava com a cabeça sobre o colo de minha mãe onde parecia que o mundo e os problemas não mais existiam. Ali eu estava sempre segura.

Ele permanece em silêncio como se me dando tempo para, de fato, interagir com a terra. Por alguns segundos permito que meus olhos se fechem e minha consciência se una, de fato, à natureza. Quando novamente abro os olhos, já me sentindo de fato como parte da terra, deparo-me com a imensidão do céu repleto de estrelas. O gigante negro não está mais no meu campo de visão, mas mesmo assim eu sei que ele está sorrindo, de algum modo eu sei. Nesse momento estamos conectados através da terra e do fogo. Enquanto me perco admirando as estrelas, ele retoma a narrativa:

- Com relação à natureza, pode-se dizer que quando o homem começou a redescobrir sua missão como protetor da vida, nós, os lupinos, já éramos bem experientes nisso. Quando o homem seguiu o seu caminho de autodestruição, o mais sábio de nós sentiu pena deles. Ele reuniu todos os lupinos e disse a eles que nós assumiríamos o papel de guardiões sozinhos, até que os homens se lembrassem de sua verdadeira missão. O universo é o nosso lar e é para ele que nós voltamos quando nossa missão está cumprida. As estrelas que você agora observa com carinho e o sentimento que você não sabe descrever, mas na verdade não passa de uma saudade do seu passado, são o maior mérito do nosso povo. Se um lupino foi leal à natureza e dedicou sua vida à busca de conhecimentos para ajudar as gerações futuras a prosseguir com a nossa missão, então nossos espíritos evoluem e tomamos o nosso lugar junto aos nossos antigos irmãos lá no céu. Mas nem todos os lupinos vão para lá; nós temos que merecer isso, caso contrário nosso espírito se desfaz e é absorvido pela terra para que, no futuro, possamos voltar a exercer o papel de guardiões em treinamento.

Não tenho palavras para traduzir o significado disso tudo para mim; de repente é como se eu tomasse ciência de todos os meus ancestrais olhando por mim, lá de cima, em cada uma daquelas estrelas brilhantes. E posso dizer que nunca me senti tão bem. Quando percebo que ele não vai retomar a fala, eu me sento novamente e seus olhos estão fixos em mim. Agora é a minha vez de falar.

- Então, como princesa, é o meu dever garantir que todos aqueles por quem eu sou responsável tenham condições de conquistar o seu lugar junto aos nossos ancestrais.

Ele me olha intensamente e completa:

- Onde houver escuridão, sempre deve haver, também, a luz. Lembre-se sempre disso e você estará pronta para liderar o seu povo. – Ele faz uma pausa e se levanta. – Enquanto essa chama ainda queimar, nós devemos aproveitar a noite como parte da natureza. – Ao terminar de falar, ele se levanta e tira as poucas roupas que vestia. Com um sorriso no rosto, e os olhos repletos de emoção, eu faço o mesmo.

No segundo seguinte, ao terminarmos de nos despir, a forma do gigante de ébano se ilumina por completo e ele se torna um imponente lobo de pelos cinzas e uma enorme marca branca no peito; seu tamanho é bem superior ao de um lobo comum. Quando a luz toma o meu corpo, eu também assumo a minha forma natural, um lobo branco e cinza, não tão grande quanto ele, mas ainda assim um pouco maior do que um lobo comum. Assim sendo, nós adentramos a mata. É hora de deixar a natureza nos guiar...

domingo, 26 de setembro de 2010

Estudos Noturnos

Estudar, estudar e estudar. Só o que eu tenho feito ultimamente é estudar e quanto mais eu estudo, mais percebo que ainda não sei nada do que há para saber. Isso é meio estranho, além de ser complicado separar o sensacionalismo da realidade, eu ainda tenho que lidar com o fato de que não sei até onde estou disposta a encarar a verdadeira realidade. Às vezes, quando algo me soa estranho demais, acabo preferindo, apenas, acreditar que é mentira, mas admito que isso tem ficado cada vez mais difícil.

Nessa noite tive outro daqueles sonhos estranhos. Eles estão ficando cada vez mais reais. Eu acordo como se ainda estivesse sonhando - ainda sinto a minha pele queimando, o cheiro do mar invadindo os meus pulmões e o gosto de água salgada na boca. Parece que eu e aquele cara estávamos, de fato, conversando na praia há alguns segundos. Eu me lembro de tudo o que ele disse, mas por algum motivo não consigo me lembrar de suas feições ou das roupas que ele vestia. É sempre assim quando sonho com ele; parece que, constantemente, algumas das peças ficam faltando.

Chega de divagar sobre os meus sonhos. É hora de levantar e voltar pros estudos. Arrasto-me até o banheiro. As luzes matinais ainda maltratam os meus olhos; não tenho vontade nenhuma de acordar, de verdade. A água fria contra o meu rosto só serve pra me deixar de mau humor. Volto para o quarto, ainda arrastando as pantufas no chão, sem levantar os pés; há essa hora eu, definitivamente, estou mais para um zumbi do que para uma estudante “dedicada”.

Os livros ainda estão abertos sobre a minha escrivaninha; o caderno aberto com as minhas anotações embaralhadas que só eu entendo se destaca no centro do material de estudo. Abro as cortinas da janela sobre a escrivaninha e me sento para revisar as últimas anotações feitas na noite passada; preciso lembrar onde parei para poder retomar o raciocínio.

Páginas e páginas de informações copiadas que provavelmente nunca vou usar pra nada. Odeio isso, mas ainda assim essa é melhor maneira de estudar que eu conheço, então não me resta exatamente uma escolha. Mas espere aí, esse é o meu caderno da faculdade, por que raios tem uma sessão inteira nele sobre profecias? E essa caligrafia definitivamente não é minha. Começo a vasculhar as anotações recém descobertas. Não entendo a metade do que isso quer dizer. Muito blá, blá, blá, sobre o dia em que os céus se tornaram vermelhos o a nova guerra santa irá começar, mas o que exatamente isso quer dizer? E quem foi que escreveu isso?

Enquanto me afundo em meus pensamentos sinto algo diferente. Como se alguém estivesse me observando. Se existe algo em que eu confio é na minha intuição. Assim sendo, fecho os olhos e me concentro, se o desgraçado acha que vai me pegar de surpresa ele certamente não sabe com quem se meteu. Com os olhos fechados, meus outros sentidos (especialmente os não físicos) se aguçam. Eu quase posso vê-lo perfeitamente parado na porta do meu quarto. O cabelo escorrido sobre o rosto formando uma franja que cobre os olhos, as roupas simples e largadas, sua postura jovem, por um segundo sinto como se fossemos velhos conhecidos prestes a ter uma daquelas conversas de horas e mais horas. Me pego apenas sorrindo.

Quando decido finalmente encará-lo não há ninguém no quarto além de mim. Por via das duvidas checo o corredor e o banheiro. Nada também. Odeio me sentir assim, como se eu estivesse enlouquecendo e me tornando paranóica, mas sei que ele estava aqui e tenho as anotações para provar.

Me sento de volta na escrivaninha apesar de ainda estar um pouco cabreira. Quando bato os olhos de volta nas anotações algo está estranho, a caligrafia corrida agora destaca um trecho em particular:

“Bem vinda ao jogo, minha jovem amiga.

Encontre Jarael e aprenda sobre o seu papel nos eventos vindouros.”

E agora mais essa. Droga. Eu mereço... Quem é esse tal de Jarael? Será que é ele que conversa comigo nos meus sonhos? Algo me diz que vou me arrepender de procurar por esse cara, mas isso é definitivamente o que eu vou fazer.


domingo, 19 de setembro de 2010

Fagulha

Ouço gritos e chamados por todos os lados. É uma bagunça. Não me entenda mal, não estou reclamando... Certo, eu estou reclamando, mas que droga. A verdade é que o lugar está tão cheio quanto parece vazio... Ceeerto, essa é uma afirmação muito esquisita, mas é também a mais pura e cristalina verdade... Ao menos pra mim.

Preciso me situar. Dou uma boa olhada em volta e... É, eu realmente estou no lugar certo. Essa balburdia é um inferno. Mesmo que eu quisesse dar atenção a todos, e eu não quero, é impossível entender algo com tantos falando ao mesmo tempo.

Agacho-me, fecho os olhos e tapo os ouvidos até que todos se calem. De repente, mais rápido do que pensei, só há silêncio. Alguém toca o meu ombro. Abro os olhos e vejo um menino, de mãos dadas com a mãe, me fazendo a mais ingênua das perguntas:

- Você tá rezando, tio? – Sorrio e aceno com a cabeça. A mãe rapidamente o puxa e segue seu caminho. Fico de pé e olho novamente ao redor. São tantas passagens, e nenhuma indicação, que é difícil achar alguém por aqui. Sem muita alternativa, na verdade alternativas demais, escolho a passagem mais próxima e sigo em direção ao ponto mais distante do cemitério. Imediatamente a algazarra recomeça.

Certo, eu sei que está muito confuso, mas vou tentar explicar com uma analogia. Sou o que algumas pessoas chamam de Médium. Tá, isso não é uma analogia, mas só porque eu ainda não terminei de explicar. Eu não jogo cartas, búzios, e muito menos leio mãos (detesto quando alguém me pede essas coisas), esse tipo de gente seria algo como uma vela. Também não tenho nenhum tipo de guia espiritual ou coisa parecida, esses médiuns seriam uma espécie de lanterna. Eu, bem, eu vejo e ouço coisas que as outras pessoas não vêem, vejo e ouço com clareza, às vezes até de mais. Pode-se dizer que sou capaz de interagir com espíritos em vários níveis, sou algo como um farol, sabe, um farol desses que, quando há muita neblina, alertam os navios que a terra firme está próxima.

Com tanta capacidade de interação, você deve estar se perguntando por que eu não pergunto a um dos espíritos como encontro quem estou procurando. A primeira regra do meu negócio é: Espíritos que vagam nunca fazem nada sem pedir algo em troca, então não peça nada a menos que não exista alternativa (Grande e útil dom esse meu).

Esse cemitério é um dos piores, já estou com dor de cabeça. Pra cá são mandados os indigentes e os bandidos de pior calibre. Por ai já da pra perceber que não há muita luz entre esses espíritos, ou como prefiro chamá-los: “demo-espíritos”. A maioria aqui nunca fez nada de bom em vida, mas como dizem: há sempre uma luz no fim do túnel. E eu estou aqui pra resgatar essa fagulha de esperança.

No meio de tanta escuridão eu não tardo a encontrar quem procuro, e é justamente aqui que está o maior problema de se encontrar um espírito tão fraco em um lugar como esse. Ele, Ruan Marco Salgueiro, como era conhecido em vida, está sendo atormentado pelos espíritos sem luz a sua volta. Desse jeito não há como ajudá-lo na passagem, tão pouco conseguir dele o que me foi pedido.

Regra número dois do negócio: Não se envolva nos assuntos dos espíritos, nunca acaba bem. Sorte dele que eu não sou muito bom em seguir regras.

- Ei, vocês ai? – É eu estou falando com os espíritos, eu disse que podia interagir com eles. A primeira reação dos demo-espíritos é sempre a mais interessante, sabe, quando não são eles que chamam por mim e sim eu por eles. Quase sempre é assim, eles me olham com raiva, mas travam. – Acho que o meu amigo ai não quer brincar com vocês, sugiro que o deixem em paz...

- Ou o quê? – Um dos demo-espíritos me corta gritando. Odeio quando eles fazem isso, significa que não vai acabar bem. Regra número dois.

Abro o casaco e espalho sal a minha volta em um só movimento. Na maioria dos casos essas criaturas não podem fazer mais do que me encher a paciência, mas existem exceções e eu não gosto de ser pego de surpresa. Regra número três: Todo risco desnecessário é grande demais.

Felizmente, pra mim, os demo-espíritos desaparecem. Acho que a proteção que criei e o fato de poder interagir diretamente com eles sem ser chamado deixaram claro que não sou qualquer um.

- Ruan Marco Salgueiro, você foi enterrado como indigente e não recebeu o perdão para sua passagem. - Faço uma pausa e espero pela reação de Ruan. Ele simplesmente não tem nenhuma. – Em vida você ajudou no sequestro de duas pessoas. Em nome dos parentes das vítimas eu lhe ofereço absolvição de seu pecado e promessa de que eles pedirão em suas preces que seu espírito tenha luz para acender. – Ruan, vira a cabeça em minha direção. Ele agora parece mais interessado.

- O que você quer de mim? – É, a recíproca é verdadeira. Nós também sempre queremos alguma coisa em troca de outra, a regra número um também vale pra eles.

- Quero saber para onde seus cúmplices levariam os reféns.


Por: Alessandro Dantas de Melo

quarta-feira, 11 de agosto de 2010

O Castelo dos Horrores

Transilvânia, 1737 em "O Castelo dos Horrores"

As espadas foram sacadas no mesmo instante. As lâminas curvas atravessaram o ar com velocidade sobrenatural, apenas para se chocarem à altura dos olhos da dupla de duelistas. A surpresa pela habilidade do oponente impressionou a ambos, que desentrelaçaram as espadas para finalmente prestar respeito um ao outro:

- Tua aparência não impressiona, mulher, mas tua cimitarra procura meu sangue com paixão inigualável, devo admitir.

- Guarde os elogios para suas madames, inglês. Não me importa o quanto você é habilidoso com essa espada forasteira, acha mesmo que terá sorte duas vezes? - Ela se referia a uma espada longa e curva, com a qual nunca teve contato antes. O cabo era bem trabalhado com fitas de couro entrelaçadas, a lâmina impecavelmente reluzia todas as poucas luzes de vela que a sala possuía e parecia ter um poder de corte sobrenatural para uma espada tão fina.

- Gostas dela, mulher? Tão rápida quanto tua cimitarra, porém mais longa e, portanto, terei vantagem. De certo não pretendes me forçar a provar isso contra uma dama tão graciosa, tenho certeza. - O tom de escárnio não deixava dúvidas sobre sua falsidade.

- Não sabe com o que está brincando, bufão! Pois farei questão de lhe mostrar! - Disse a mulher com um rugido bestial, enfurecida.

O vampiro segurava a espada japonesa como um francês empunha um sabre em um duelo, com a mão inábil encostada nas costas e o fio cortante na posição lateral. A assamita não entendia o que uma postura tão arcaica poderia conferir a uma espada tão diferente. Mas suas décadas de combate não lhe deixariam pecar em sua decisão. O centro era a chave do ataque, já que o fio mirava para fora da linha de visão dos dois.

E partiu enfurecida para a ofensiva. Para um olho mortal as cenas seguintes não passaram de borrões escorregadios em pleno ar. Para os duelistas foi uma série de 5 minutos de movimentos incansáveis com a força e agilidade que apenas um cainita poderia ter. Por diversas vezes as armas se encontraram novamente, e o resultado nunca era positivo para um dos lados, nem mesmo um arranhão foi feito. Os combatentes possuíam não só habilidades semelhantes, como técnicas exatamente opostas, o que não agradou em nada o ego dos participantes, obrigados a aceitar a perícia do outro.

Inconformados com o impasse, decidiram atacar sem hesitação, decididos a finalizar o combate em um único corte. E finalmente se atingiram. Cortes laterais em direções opostas rasgaram-lhes a carne sem nenhuma dificuldade, e o sangue espirrou nas paredes do aposento, como espólios de guerra a presentear os guerreiros, que prontamente interromperam seus esforços. A dor de nada importava naquele momento, apenas a incerteza de como agir perante tal situação: Estavam diante de um claro empate.

O inglês fez um movimento de corte rápido e curto no ar, retirando todo o sangue da arma, e a embainhou, para em seguida curvar-se à sua oponente:

- Devo admitir minha vergonha. És uma adversária admirável e me atingiste com precisão cirúrgica. Congratulações.

A expressão de ódio da assassina instantaneamente se transformou em dúvida. O mesmo bufão que zombara de sua honra há poucos momentos acabara de se curvar em respeito e elogiá-la. Honra em um europeu? Nunca havia presenciado nada parecido. A sensação de um conceito tão familiar a fazia sentir-se em casa novamente. E após uma rápida reverência e embainhar de espada, cruzou os braços e retrucou:

- Não, não deve admitir derrota. Nos atingimos no mesmo momento. Só não esperava o fim do combate com apenas isso. Mas me acalma ver que finalmente se livrou do sorriso irritante que carregava consigo. Que tipo de homem é você?

- O tipo de homem que respeita um adversário digno. Não é de meu desejo que nos destruamos em um combate sem motivos. Mas o calor da competição vale qualquer risco, não é verdade? Por favor, perdoe minha característica impolidez diante de uma dama. Poderia esse humilde espadachim saber a graça de sua carrasca? - Não pôde mais segurar seu natural meio-sorriso, o que foi prontamente percebido por sua mais nova conhecida.

- Você é uma criatura curiosa. - E silenciou-se alguns segundos, para recomeçar - Selena Harpkin, e não posso dizer que estou encantada. Qual é o seu nome e o que faz aqui?

- Faço de Louis o meu nome, madame. E como tu já deduziste antes, vim da Inglaterra. Busco o tão falado Terror do Castelo, que não satisfeito em mutilar e devorar os mortais vizinhos faz questão de guardar todos os seus pertences e tesouros. Então como poderia estar aqui por outro motivo? Um monstro horripilante, espólios abundantes e uma linda moça destinada a cruzar o meu caminho. Terá o senhor finalmente perdoado meus pecados?

- Ou talvez tenha finalmente resolvido me punir pelos meus. - Disse, seguida de um leve suspiro. - Também busco o Terror do Castelo, Senhor Louis. E visto que é tão espirituoso ao citar sua busca como uma aventura, sugiro que nos ajudemos. Dividimos os espólios e nos livramos de um problema em comum. De acordo? - E estendeu sua mão.

- E como eu poderia negar? Vamos então, minha honrada companheira, e que o diabo cuide dos despedaçados que deixaremos em nossa trilha de sangue! - E apertou a mão de Selena, exaltado. Essa por sua vez esboçou um olhar perplexo.

Passaram pela porta da sala, para visualizar um pequeno quarto que abrigava apenas uma escada em espiral, cujo fim escapava até dos olhos imortais de seus contempladores. Seria uma longa e sangrenta noite, sem nenhuma dúvida.


Por Rafael Guedes

quarta-feira, 30 de junho de 2010

Desafio

“Highway to hell... I´m on the highway to hell”

Essa ainda é uma das poucas músicas que fazem sentido quando estou trabalhando no carro. Estou debaixo desse motor faz duas horas, mas não importa, vou ficar aqui o tempo que for necessário pra colocar essa belezinha pra correr de novo.

Desde que saí da força aérea o mais próximo que tenho de um jato é o meu carro. As corridas são divertidas, fazer aqueles idiotas comerem poeira é impagável, mas ainda assim não é a mesma coisa, sinto falta do meu jato, de poder pilotar pelos céus, vagar entre as nuvens e ficar a sós com o paraíso.

Mas já que não posso mais pilotar ao menos vou usar o que aprendi lá no meu carro, essa belezinha só não voa porque eu ainda não posso tirá-lo do chão, não importa quantos mecânicos digam que é loucura usar os upgrades de jatos no meu carro, experiência conta mais do que conhecimento, então eu faço as coisas do meu jeito e sempre acabo vencendo as corridas, bem, quase sempre.

A corrida dessa noite deve ser boa, as apostas estarão altas e eu preciso da grana. Os trabalhos com Jarael pagam cada vez pior e se eu inventar de não pagar a parte dele na igreja as coisas sempre terminam mal pra mim, então é melhor manter o pouco que ele oferece comigo, brigar com aquele anjo definitivamente não é uma boa idéia, ele não tem senso de humor.

Já não sei mais se quero que ele apareça logo com outro serviço. Cada vez que ele aparece eu ponho o meu pescoço em risco, não é que eu não goste da emoção de fazer isso, apenas acho que o pagamento poderia ser melhor. Pro inferno, no final eu acabaria fazendo o trabalho de graça, só pela diversão de botar aqueles idiotas de volta no lugar deles, mas que o Jarael jamais desconfie disso, ou o aluguel da garagem é que vai ficar em risco.

Porcaria, o rádio parou de novo. Saio debaixo do carro com o rosto e o macacão imundos com graxa, óleo e sabe-se lá o que mais vive ali embaixo. Dou uma pancada de leve no rádio e ele logo volta a funcionar, odeio essa coisa velha. Quando me viro de volta para o carro me deparo com aquilo que eu sabia que cedo ou tarde aconteceria: Jarael está sentado no banco do carona me encarando com a mesma expressão vazia de sempre.

Dou um suspiro cansado, limpo as mãos em um pano e abro a porta.

- O carro não ficará pronto até de noite, senhor. Por favor, queira retornar mais tarde.

Ele me responde virando seu olhar vazio em minha direção. O fato de ele não ter senso de humor não quer dizer que eu não possa ter.

- Entre no carro, nós precisamos conversar. – O tom frio e inexpressivo dele de fato combina com o olhar. É extremamente monótono conversar com alguém assim.

Entro no carro e fecho a porta, seria inútil tentar dizer a ele que estou ocupado.

- O que houve dessa vez? – Pergunto me acomodando no assento do motorista.

O olhar dele se perde olhando para a parede novamente, eu realmente queria saber como ele consegue ser tão vazio. Ele respira fundo, nessas horas eu me pergunto o quão humano e o quão anjo ele realmente é? Nunca engoli esse papo de origem divina e o fato de ele se esquivar sempre que eu toco no assunto realmente não colabora para que eu confie mais nele.

- Estamos com um problema. Precisamos que você faça outro serviço para nós. – Ele não transmite preocupação alguma em seu tom de voz, mas as palavras me parecem sérias por algum motivo que eu não sei explicar.

- Tudo bem. O que vocês querem que eu faça dessa vez? – Quanto mais cedo eu aceitar o trabalho, mais cedo me livro dele e posso voltar a trabalhar, já vi que não vou me livrar dessa mesmo.

- Existe uma poderosa feiticeira a quem precisamos consultar. Ela morreu há muitos anos e estava presa no inferno desde então. Porém, sabe-se que ela recentemente escapou e provavelmente deve estar em busca de um modo de se atar de volta ao mundo dos mortais. É vital que nós a encontremos o quanto antes. – Ele fala sem me olhar nos olhos, isso me irrita, mas mesmo assim presto toda atenção em suas palavras. A coisa parece mais importante do que eu antecipara.

- E quem é essa feiticeira? Por que ela é tão importante? – Minhas perguntas são seguidas de um silêncio realmente incomodo. Se eu já não estivesse acostumado com Jarael diria que ele estava ponderando sobre o quanto me contar, mas sendo quem ele é, fica difícil saber o que se passa na sua cabeça. Por um segundo agradeço aos céus por não ter que enfrentá-lo em uma mesa de pôquer, ele seria um adversário e tanto.

- Ela escapou do inferno com algumas informações que nós precisamos. Não sabemos quantos mais escaparam com ela e nem por onde ela saiu, além disso só o que posso lhe dizer é o seu nome, no demais você terá que localizá-la por seus próprios meios.

- Calma lá. Como raios eu vou encontrar uma feiticeira morta com apenas um nome? – É revoltante como esse anjo acha que eu tenho algum tipo de onisciência quando se trata de fazer o trabalho sujo dele.

- Não espere que eu faça o seu trabalho, piloto. Apenas faça o que lhe é mandado e será recompensado. – Não sei o que me revolta mais, se é a arrogância dele ao me passar esse tipo de missão, ou se é o fato de nem mesmo quando discutirmos o tom de voz e a expressão dele se alterarem.

- Como se vocês me pagassem algo que possa ser remotamente justo pelo que eu faço. – É mais um desabafo de algo que estava engasgado do que de fato uma reclamação da qual eu esperaria alguma resposta. – Mas que seja. Qual é o nome da infeliz?

- A feiticeira se chama Bianca. Eu volto a entrar em contato quando você conseguir algo sobre ela. – Ele termina de falar como se eu não houvesse acabado de reclamar de tudo o que ele diz e, antes que eu possa acrescentar algo mais, ele sai do carro e desaparece ao bater a porta, me deixando sozinho de novo com a minha música e agora com o problema de precisar encontrar essa tal Bianca. Vou ter que pensar sobre isso durante a corrida, agora preciso terminar de arrumar o carro.

sexta-feira, 18 de junho de 2010

Iniciação

Já se passaram dois dias desde que cheguei aqui. Não agüento ficar esperando a noite chegar pra poder realizar o ritual. Nos outros dias também foi assim, passei o dia todo agoniada esperando anoitecer pra poder fazer o que precisa ser feito. Ao menos nesse casebre isolado não tenho que me preocupar com os assuntos da matilha. Nada mais importa, as ordens de Kida, as maquinações de Wolfgart, ou mesmo a vigilha silenciosa dos guardiões. Aqui eu posso ser eu mesma e ficar a sós com os meus pensamentos. Isso às vezes faz bem pro espírito. Me pergunto como Kida se sentiu quando teve que passar por isso dez anos atrás.

Odeio essa sensação de não saber o que vai acontecer a seguir. No primeiro dia eu não fazia idéia de que tipo de animal eu teria que caçar pra poder conseguir o meu amuleto. Acabou que enfrentei um urso cinzento, péssima idéia. Nunca havia encontrado um animal tão forte. Escapar de cada golpe de suas patas era uma proeza única e, acredite, ele tentou me acertar diversas vezes. Cada uma delas me fazia pensar que seria a hora de perder a minha cabeça, mas no fim a força dele não foi páreo pra minha agilidade combinada a sabedoria que adquiri nos combates simulados com os filhotes da matilha. Foi realmente duro, quando o combate terminou eu estava completamente sem forças, era possível sentir cada um dos meus músculos gritando de exaustão, mas mesmo assim meu espírito estava realizado, as feridas ardiam, o suor escorria pelo meu rosto sujo de terra, e a brisa fria noite trazia os aromas da floresta aos meus pulmões que praticamente gritavam, mas ainda assim eu não poderia estar me sentindo melhor quanto ao que acabara de realizar. É nisso que dá encarar o animal mais poderoso das redondezas, o urso cinzento é conhecido nessas terras, pois nem mesmo os mais audazes predadores ousam desafiá-lo e eu ousei. Onde eu estava com a cabeça? Ao menos agora não há mais nenhum modo de Wolfgart tentar assumir o trono da família. Eu não quero liderar a matilha, realmente acho que não fui feita pra isso, mas se esse for o único modo de deter Wolfgart é exatamente isso o que eu farei e é exatamente pra isso que serve a presa do urso, pra provar o meu lugar de direito. Lembro que anos atrás Kida voltou com a garra de um leopardo e Wolfgart com os chifres de um touro selvagem, os animais mais poderosos derrotados dentro da matilha. Espere só até que eles vejam as presas do urso cinzento, mal posso esperar pela expressão revoltada no rosto dele e o orgulho nos olhos de Kida.

Ontem foi a mesma coisa, eu ainda estava cansada da caçada na noite anterior, e fazer qualquer coisa nesse casebre é trabalhoso, mas mesmo assim eu ainda fiz uma coisa ou outra. Quando a noite chegou iniciei o ritual de purificação. Fui até a margem de um rio perto daqui e me banhei sob a luz a da lua. As águas naturais são realmente poderosas, não só o meu corpo ficou completamente limpo e renovado como também o meu espírito. A força das águas conseguiu limpar todos os sentimentos negativos que eu carregava. Eu não mais pensava no meu rancor por Wolfgart, não estava mais preocupada com Kida e adquiri uma nova confiança em mim mesma. Os músculos pararam de doer, as feridas da caçada não mais ardiam e eu pude ficar completamente relaxada, meu corpo e meu espírito estavam purificados e unificados com a natureza. Quando voltei ao casebre acendi os incensos de ervas que trouxe comigo de casa e preparei os artefatos pro ritual de hoje. A casa agora vibrava de modo diferente, o aroma de ervas do incenso me trazia bons pressentimentos. Foi realmente o dia mais tranqüilo que tive em anos, consegui dormir o sono leve de um bebê embalado pelo sussurro amigável do vento e das águas do rio.

Hoje acordei bastante disposta apesar do tempo fechado e da neblina que cobria quase todo o campo. Tive vontade de assumir a minha forma animal e correr pelos campos, sentir o vento e a mata como se fossem parte de mim mais uma vez, mas preferi poupar as forças pro ritual, afinal, esse vai ser o mais difícil e mais importante de todos. Já está tudo pronto, só espero que essa chuva não dificulte as coisas, vai ser um saco manter a fogueira acesa com a chama viva e brilhante se estiver chovendo muito. Não consigo parar de pensar em quem será o meu espírito guardião e que forma ele irá assumir, estou realmente curiosa pra saber. E não sei por que, mas a aquela mesma sensação que senti semanas atrás quando estava caçando perto de casa tem estado cada vez mais presente. Não sei o que se passa comigo, é como se o tempo todo algo ou alguém estivesse a espreita, apenas me observado e me estudando. Não gosto nem um pouco disso. É até agradável saber que tem alguém tão interessado em mim a ponto de me vigiar a cada passo, mas é ao mesmo tempo extremamente angustiante não fazer a menor idéia de quem é essa pessoa, se é que ela realmente existe.

Quando finalmente decido cessar meus devaneios e arrumar algo pra fazer, noto algo peculiar no casebre. Um pequeno camundongo branco de olhos vermelhos está parado bem no meio da sala me encarando. Eu estou no meio da mata, afastada de tudo, seria impossível que um camundongo branco chegasse aqui sozinho, especialmente um tão bonitinho, se fosse uma ratazana cinza eu nem diria nada, mas não tenho a sorte de algo tão simples acontecer comigo, são só as coisas bizarras mesmo. Chego a pensar em ignorar o pequenino, talvez ele desapareça e eu não tenha que lidar com outra loucura, mas, pra variar, a curiosidade me vence e eu acabo perseguindo a bola de pelo pela casa. Por fim consigo capturá-lo na cozinha (se é que se pode chamar aquilo de cozinha). Seguro o pequeno animal cuidadosamente, mas com firmeza o bastante para que não fuja. Sorrio ao notar como bate rápido o seu pequeno coração.

- De onde você veio? – Me divirto ao perceber que estou falando com um roedor branco. Antes que eu acabe me apegando a pequena criatura, pego um pote velho que provavelmente já foi um prato um dia e alguns livros em minha mochila e utilizo-os para fazer um lugar seguro onde posso guardar o ratinho e evitar que ele escape, não posso lidar com isso agora, o ritual é a minha prioridade.

De volta à cozinha me sirvo com um pouco de sopa. Odeio essa comida pura, o que eu não daria pra poder comer um bom bife se o ritual permitisse. Eu nunca fui boa de cozinha, então a sopa, além de ser uma comida sem graça, sendo preparada por mim acaba ficando pior ainda, mas também não é nada que eu não possa fechar o nariz e acabar comendo rápido pra não sentir o gosto.

Acabo perdendo a tarde toda me preparando pro ritual, pego bastante lenha pras fogueiras, organizo as ervas e termino de limpar as presas do urso cinzento, acabei ficando o dia todo imersa nessas coisas, nem vi o tempo passar, quando dou por mim o sol já está se pondo. Droga, acabei me esquecendo do ratinho! O bichinho deve estar faminto e morrendo de sede embaixo dos livros. Corro até a cozinha e faço uma pequena tigela pra ele com água e ponho ao lado um pouco dos legumes que sobraram da sopa, não sei nem se ele come isso, mas se não comer também não há nada mais que eu tenha a oferecer. Lembro-me de ter visto uma gaiola de passarinhos em algum lugar, dou uma olhada pelo casebre e não tardo a encontrá-la. Quando sua nova casinha está pronta com água e comida, vou até o lugar onde o deixei e removo os livros que o prendiam. Imediatamente o bichinho corre em disparada para água, não posso evitar me sentir culpada por tê-lo esquecido.

Agora, olhando com mais cuidado, posso notar que há uma pequena tira vermelha de couro presa em seu pescoço. Muito estranho. Decido dar uma olhada e sou surpreendida com algo ainda mais estranho: meu nome está gravado nela. E há também uma mensagem do outro lado. Droga, não posso lidar com esse tipo de coisa momentos antes do último ritual, mas ao mesmo tempo eu não vou conseguir me concentrar se ficar preocupada imaginando o que a mensagem dizia. A dúvida me consome. Passo quase uma hora sentada de braços cruzados olhando para a fita sobre a mesa e para o camundongo assustado no fundo da gaiola.

Chega! Não agüento mais encarar esse papel. Acabo saindo do casebre pra respirar um pouco de ar puro. Observar o campo e sentir a brisa do vento contra o meu rosto sempre me ajudou a colocar as coisas em perspectiva. Olho para as estrelas em busca de uma resposta, quando finalmente desvio o olhar já estou decidida, vou ler logo o bilhete e acabar com isso de uma vez. Não posso fazer o ritual com isso me atormentando e não posso me dar ao luxo de falhar e desapontar Kida, não vou dar esse gostinho a Wolfgart, sei que ele adoraria me ver falhando.

Volto pra dentro do casebre e procuro pelo pouco de luz que ainda me resta, já é hora de acender as tochas ao redor do casebre, essa precisa ser uma noite bem iluminada pelos elementos da natureza. Uma vez que as chamas estão brilhando vamos ao bilhete. Respiro fundo e abro a fita, a primeira coisa que vejo ainda é o meu nome escrito em uma caligrafia bonita, agora vamos a parte que eu não vi ainda, as letras miúdas me deixam tensa: “Pode um vampiro desejar uma lupina?”

- O quê? – Me surpreendo gritando alto o bastante pra assustar até o mais feroz animal da floresta. – Só pode ser coisa daquele maldito coração negro! – Me ouço rosnando baixo tentando recobrar a sanidade que o bilhete expulsou de mim. – Não vou permitir que você estrague o meu momento, seu desgraçado. Você não vai fazer isso comigo! – Atiro a fita longe e volto até o camundongo amaldiçoando Wolfgart e todas as possíveis gerações de sua família.

De volta à mesa sou praticamente obrigada a dar um sonoro tapa em minha própria testa. - Como pude ser tão idiota? - Eu tranquei o ratinho em uma gaiola de madeira, ele obviamente roeu as barras e escapou, no que diabos eu estava pensando? Odeio quando dou esse tipo de mancada. Não importa. Que Wolfgart e seu maldito esquema pra me sabotar vão pro inferno, não vou permitir que eles estraguem o meu ritual. Vou até as minhas coisas, visto minhas roupas ritualísticas, penduro o novo cordão com as presas do urso cinzento no pescoço, queimo as ervas amassadas na tocha mais próxima e me dirijo para o lado de fora do casebre.

No momento em que a porta se abre um enorme homem careca e de pele negra está me aguardando ao lado de uma fogueira do lado de fora. Como não o ouvi chegando e acendendo a fogueira? O que está havendo?

Aproximo-me com cautela, por mais que eu devesse estar preocupada e receosa, não estou. O homem exala uma aura de conforto, sinto uma certa cumplicidade com ele, como se já nos conhecêssemos há muitos anos. O ar em torno dele é leve, carregado de uma seriedade tranqüila e serena, a fumaça da fogueira tem um cheiro bom, me pergunto que tipo de ervas queimam ali dentro. Quando finalmente me aproximo, vejo os dois metros de músculo me encarando com aquele olhar misterioso, ele parece um gigante de ébano saído de alguma historia antiga. Ficamos frente a frente e ele se levanta com os olhos fixos nos meus. Sinto como se seus olhos atravessem a minha alma.

Minha mente se distrai, estou realmente muito à vontade com ele, a ponto de me pegar pensando sobre o fato de a minha altura não ir muito além da de seu peito nu. Talvez se eu ficar na ponta dos pés consiga ver por cima de seus ombros.

Ouço a lenha estalando na fogueira e quando dou por mim estou tão envolvida em seu olhar que não percebi o que se passou, meu corpo está todo coberto por tatuagens tribais negras, me sinto como uma rainha amazona ou algo do tipo, talvez eu realmente esteja destinada a liderar a matilha, mas meus devaneios são interrompidos por sua poderosa voz que ecoa em um tom seguro e calmo:

- Veremos se a princesa está pronta para o trono, está na hora de testá-la.

sábado, 22 de maio de 2010

Exílio

Já faz mais de um ano. Há tempos não tenho caçadas ou perseguições no meio da noite. Minha estrada seguiu um rumo diferente. Eu falhei em capturar a criatura, agora devo pagar por meus pecados.

Um ano enfiado nesta paróquia, cercado de velhos que se dizem bons cristãos. Não sei quem é mais hipócrita aqui, eu, que digo estar tentando mudar meu destino, ou eles que dizem ser livres de pecados e tentações.

Cheguei aqui como um peregrino que perdeu sua fé. Eu falhei em uma missão importante e por isso não me sinto digno de continuar caçando. O mundo não pode arcar com as conseqüências das minhas falhas.

Eu era o melhor no que fazia, justamente por isso não me era permitido falhar. Com certeza o que aquela criatura levou já custou muitas vidas inocentes e o sangue delas está nas minhas mãos. A culpa é minha.

Não importa quantos falsos cristãos eu expulse daqui. Esses pedófilos, ladrões e sabe-se lá mais o que não param de vir procurar perdão através de um homem que não consegue perdoar nem os seus próprios pecados.

Ainda bem que o dia finalmente acabou. Não há nada como passar pela porta do meu quarto, sentir o cheiro de mofo que impregna esse lugar, ir até a cama, arrastá-la, abrir espaço entre as pedras na parede e poder finalmente fumar o meu cigarro em paz. Esse lugar realmente está me afetando.

Não importa quantas vezes eu reveja as runas marcadas sobre a porta, as linhas de sal que cercam o quarto, ou mesmo volte a polir todas as armas que nunca pretendo voltar a usar, o tempo todo tenho a impressão de que isso não acabou. Cedo ou tarde vou ter que lidar com os meus demônios.

Alguém bate à minha porta. O som da madeira rangendo acaba com o meu momento de sossego. Que tipo de idiota vem me procurar a essa hora? Esses pedantes hipócritas nunca se cansam de reclamar da vida?

Confiro as minhas armadilhas, a faca de prata presa à bota, o cantil de água benta para servir ao convidado, a pistola em minhas costas presa ao cinto e a faixa de sal abaixo da fresta da porta. Com tudo em ordem e a despeito de minha notável irritação, acabo optando por atender a maldita porta.

Acho que essa era uma das últimas coisas que eu esperava ver. Como raios ela chegou até aqui? Os olhos castanhos me fitam como no dia em que ela morreu; seu cabelo ruivo caindo sobre os seios e o colete preto ainda manchado sobre a blusa branca com as mangas dobradas e sujas. Eu a reconheceria em qualquer lugar.

- Olá, major. – Ela me cumprimenta com um sorriso, parece que nada aconteceu e é apenas mais um dia de trabalho. Odeio essa sensação.

- Bianca, eu... – Não adianta. Por mais que eu me esforce às palavras não saem. Eu falhei com ela no passado e agora ela sorri pra mim como se nada estivesse acontecendo.

Seus olhos me encaram durante o silêncio. Ainda estou decidindo como reagir quando ela fala de novo:

- E então, vai me deixar entrar ou ficar me olhando com essa cara assustada o dia todo? – Em um segundo de diálogo ela já está testando a minha paciência. Definitivamente é ela.

- Bianca, o que houve com você? Eu te enterrei faz cinco anos! Quem foi o desgraçado que te trouxe de volta? Eu juro que vou fazê-lo pagar! – Me recupero do baque e a fúria me domina quando penso no que pode ter acontecido.

- Uhum. Oi, pra você também, major. E, não, ninguém me trouxe de volta. Eu apenas não tinha forças o bastante pra me materializar e se você não me ajudar não vou poder me manter assim por muito mais tempo, então, dá pra arrastar o sal e me deixar entrar? – O tom desafiador dela é único, eu sabia que tinha coisa errada chegando.

Faço uma pequena brecha na linha de sal e risco uma das runas no canto da porta. Ela me lança um sorriso sarcástico e entra apressada. Lembro-me de quando era eu a ter esse tipo de expressão estampada no rosto.

- Você continua o mesmo. Ainda se culpando por tudo de errado no mundo. – As palavras dela são cortantes. Antes de encará-la novamente me ocupo em arrumar a linha de sal e talhar a runa de volta.

Quando nossos olhos se encontram ela está sentada sobre a minha cama encarando o lugar onde guardo o meu antigo equipamento de caça.

- Há quanto tempo você está comigo? – Lanço a pergunta ignorando o comentário dela sobre a minha culpa.

- Basicamente desde que você decidiu bancar a criança e fugiu das suas responsabilidades. – As alfinetadas não param. Nem mesmo depois de morta ela pára de me atormentar com a verdade.

- Eu não fugi de nada. Apenas aceitei que não era mais digno do trabalho. – Exagerei. Dessa vez não consegui convencer nem a mim mesmo.

- Por favor, major. O que eu preciso fazer pra que você me leve a sério, começar a conversa com: “Perdoe-me, padre, pois eu pequei?” – Apesar do sarcasmo ela fala sério. Quando se é parceiro de alguém por tempo de mais você aprende a ler nas entrelinhas de cada sentença.

- Então, por que ainda guarda seu equipamento de caça e faz questão de que ele esteja pronto pra ser usado? – Ela, de fato, é a representação da personalidade que eu costumava ter.

- Eu mudei, Bianca. Não sou mais o combatente impulsivo e sem consciência que eu costumava ser. – As palavras são ditas tentando convencer mais a mim do que a ela.

A única resposta que ela me dá é uma encarada séria. Os comentários sarcásticos que eu censurei em minha mente por tanto tempo começam a vir à tona. É melhor mudar o assunto.

- Do que você precisa? Não disse que estava com pouca energia?

Um sorriso se abre em seu rosto.

- Não. Eu só precisava que você me deixasse entrar. Já estou ligada a uma certa peça de seu equipamento há muito tempo. – Droga. De fato eu estou enferrujado. Antigamente eu jamais acreditaria nesse tipo de história desesperada sem uma prova.

- Touché. – Ao menos eu ainda sei reconhecer quando fui vencido. – Então o que fez você reaparecer justamente agora? – A pergunta surte efeito imediato. Ela entende que o momento de brincadeiras acabou e a seriedade que se apresenta em sua expressão é a prova disso.

- Temos pouco tempo até que os céus se tornem vermelhos. Devemos nos mobilizar o quanto antes para impedir que aquela criatura que você deixou escapar consiga terminar os rituais. – As palavras me atingem como facas, eu sabia que cedo ou tarde teria que tornar a lidar com isso. – Eles já estão quase prontos, mas ainda podemos impedi-los.

Minha única reação imediata é acender outro cigarro. Maldição. É a primeira vez nos últimos meses que fumo mais de um na mesma noite.

- Muito bem, Bianca. Você quer que eu arrume a minha bagunça, mas o que te faz pensar que dessa vez as coisas serão diferentes? Que eu não vou simplesmente deixá-lo escapar por entre os meus dedos novamente? – Novamente as perguntas são direcionadas mais a mim mesmo do que a ela. Será que eu estou pronto pra voltar a caçar?

Ela se levanta, ainda com o rosto sério, segura meu rosto entre suas mãos (mesmo sendo um espírito o toque dela continua a me acalmar), seu olhar profundo mergulha dentro do meu e ela me responde com calma:

- Porque, dessa vez, você não estará sozinho. – Não posso evitar o sorriso que se abre em meu rosto.

- Não me leve a mal, Bianca, mas há pouco que um espírito pode fazer em campo.

Ela me abraça e sussurra ao meu ouvido:

- Eu tenho os meus truques, lembra? E, além disso, quem disse que eu estou falando de mim? – Ela só pode estar brincando!

Me afasto imediatamente, como ela ousa insinuar algo assim?

- Bianca, nem pense nisso! Eu trabalho sozinho. O que aconteceu com você é prova disso, eu não sou a pessoa certa pra isso. Não existe a menor chance de você me convencer a liderar um grupo. – Ela apenas me observa enquanto deixo minhas frustrações extravasarem.

- E quem disse que você vai liderar? – Ela me apunhala em meu ponto fraco.

- Além de montar uma equipe você ainda quer que eu obedeça às ordens de alguém? - Estou completamente fora de mim, mas não consigo evitar. Como sempre, ela tem o dom de me tirar do sério.

- É bom que você já tenha feito as pazes com a idéia de montar uma equipe. – Traído por minha própria fúria.

O silêncio se torna um peso enquanto nos encaramos nos próximos segundos. Posso sentir o cigarro queimando entre os meus dedos, dou mais um trago e tento recobrar a razão.

- Ótimo. Eu assumo a minha responsabilidade nisso tudo, mas me recuso a arrastar mais alguém pra dentro disso. Nós vamos caçar, seremos apenas eu e você, entendido? – Minha postura muda conforme as palavras saem. Estou de fato voltando a ser um caçador. E se vai ser assim, então serei novamente o melhor que há no serviço. Mas essa é minha sina e eu não pretendo deixar mais ninguém ser pego no fogo cruzado entre eu e os malditos.

- Tudo bem, major. Quando partimos? – O sorriso vitorioso domina sua expressão. A menina sabe mesmo como avivar meu espírito.

Ela espera por uma resposta enquanto me viro com o cigarro na boca, abro o baú onde escondia meu equipamento, - Precisa mesmo perguntar? - destravo a velha escopeta e olho de volta pra ela. - Vamos caçar alguns demônios.

sábado, 15 de maio de 2010

Leituras e Interpretações

Lá vou eu. Mais uma tentativa inútil de extrair algum conhecimento dessa biblioteca medíocre da faculdade. Nunca vi disso, uma única prateleira interessante. E nem é de ocultismo de verdade. É apenas de esoterismo. Se eu tiver algum pecado pra redimir, certamente, vasculhar essa prateleira é o modo certo de fazer isso.

Um livro sobre vampiros é o melhor que eu consigo aqui, talvez seja interessante, basta que ele não venha me dizer que vampiros montaram uma banda emo que brilha na luz do sol. Não suporto essas teorias adolescentes, esse pessoal poderia, no mínimo, estudar um pouco antes de sair escrevendo besteira pra agradar a um bando de menininhas que acabaram de entrar na puberdade. A verdade certas vezes é dura demais pra esse pessoal aguentar.

A biblioteca daqui é sempre vazia nesse horário, a maior parte dos alunos passa a hora do almoço discutindo nas lanchonetes ou perturbando o juízo dos professores. Teoricamente isso seria algo ruim, o que explicaria a maré de notas baixas da maioria dos alunos, mas, ao menos pra mim, não é assim. Eu vejo isso como uma brecha para ter algum sossego estudando sozinha.

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Uma hora se passou desde que eu comecei a ler. Até que o livro não é dos piores, só não tem utilidade nenhuma pra pessoas, como eu, que querem aprender sobre magia de verdade. Eu não tenho ilusões de grandeza pra achar que vou sair por ai caçando vampiros ou qualquer loucura desse tipo. Isso é muita viagem! Até por quê, eu, até hoje, não tive problemas com vampiros. O único que eu conheci era até gente boa. Ou talvez isso é o que ele estava querendo que eu pensasse na ocasião.

Quando me preparo para devolver o livro inútil a prateleira de onde ele, provavelmente, não deveria ter saído e voltar à aula, reparo que tem alguém mais averiguando a prateleira onde peguei o livro. “Quem será ele?” Eu me pergunto. Só há um modo de saber. Assim sendo, lá vou eu bancar a boba esperançosa.

Eu ainda decidia como puxar assunto quando os olhos azuis dele praticamente me fazem enlouquecer. Poucas vezes alguém me fitara com tamanha intensidade. Ele caminha calmamente até a mesa onde eu estava e se senta olhando pra mim.

Antes que eu consiga assimilar que ele ainda está de fato ali, sua voz melodiosa lança a pergunta: - Você não quer se sentar comigo? Acredito que podemos ter uma conversa bastante interessante. – Por essa eu definitivamente não esperava. Primeiro, o cara aparece na sessão de livros que só eu visito, logo depois, ele me chama pra conversar. Finalmente as coisas estão melhorando.

Ainda meio sem jeito, eu me sento, ponho o livro de volta sobre a mesa e pergunto: - Sobre o que você quer conversar? – É, eu sou péssima em escolher as palavras para dar início a um diálogo.

Pra minha sorte ele parece não concordar. Ao menos o sorriso que aparece em seu rosto me diz que não. Acho que estou encabulada. Faz tempo desde que algum rapaz se dispôs a conversar com a menina louca que sonha com o futuro e fica fuçando livros de ocultismo por aí.

Vejo seu olhar fitando o livro que eu, até então, julgava inútil; sem que eu perceba os olhos dele estão de volta nos meus e antes que eu consiga pular fora de minha própria confusão mental, ele diz: - Não deixe que lhe desencorajem. Você é detentora de dons únicos, com o tempo eles começarão a fazer sentido e, através deles, você poderá ajudar outros a fazer a diferença nos dias que estão por vir. Até lá, apenas continue se dedicando as coisas que o seu coração acha importantes. – Devo estar sonhando, parece que estou tendo um daqueles diálogos loucos que tenho comigo mesma nas noites depressivas em que preciso de alguém pra me animar.

Me sinto um pouco acanhada. Desvio o olhar por um instante e vejo algumas pessoas passando e me olhando pela janela como se eu estivesse fazendo algo realmente estranho. Quando olho de volta pro rapaz, me deparo com a cadeira vazia. Pra onde ele foi? Ele estava bem aqui e... Era bom de mais pra ser verdade. Aconteceu de novo.

Acho melhor eu dar o fora daqui. Ou então esses desocupados vão começar a fofocar (ainda mais) sobre mim. Pego a minha bolsa e o livro que eu tencionava devolver e volto pra aula. Já tenho algo pra me empenhar enquanto ouço as mesmas correções de exercícios de sempre e finjo estar prestando atenção.

As horas se arrastam. Os segundos parecem minutos e os minutos parecem horas. Eu já nem sei mais sobre o que estou lendo. Um capítulo inteiro passou diante dos meus olhos e eu não consigo citar uma palavra se quer do que acabei de ler. Durante todo o dia, meus pensamentos se voltam para o mesmo tópico: será que eu realmente estava fazendo algo de estranho? Digo, ainda mais estranho do que o de costume. Agora eu dei pra imaginar pessoas e interagir com elas? Eu finalmente enlouqueci de vez? Ou será que isso é só o início de alguma coisa e esse cara, seja ele quem for, está querendo me apontar alguma direção? Eu, definitivamente, não tenho essas respostas, mas prefiro acreditar que as coisas finalmente estão começando a acontecer.

sexta-feira, 7 de maio de 2010

Prazeres Inocentes

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Era disso mesmo que eu precisava. Não há nada como uma boa caçada noturna para reanimar um espírito rebelde. Durante a caça não preciso me preocupar com o que os outros membros da matilha estão planejando; não preciso me fazer parecer uma boa menina para que Kida possa ser vista como uma nobre na frente de Wolfgart e, principalmente, não fingir me importar com a vida de cada um daqueles malas que ficam me pajeando o dia todo, como se eu fosse uma bonequinha de porcelana que eles tem que polir constantemente. Aqui eu posso ser eu mesma.
Meus pés descalços saboreiam o toque da grama, meus pulmões se enchem com a brisa da noite e a caçada começa. A calça jeans aperta um pouco e a blusa pinica com meu suor, mas não posso correr o risco de tirá-las e me expor, caso esbarre com algum humano desavisado. Afinal, muitos casais jovens vem até a beira da floresta pra namorar. Como eu gostaria de poder dizer que já desfrutei desse mesmo prazer inocente. Enfim, é melhor me acostumar com a roupa e correr atrás da minha presa.
Não muito longe daqui há uma clareira onde os animais silvestres costumam ir para acasalar. Droga, até os cervos estão com a vida amorosa mais em dia do que a minha e ter esses seis vira-latas me rondando não ajuda. Eu já cansei de despistá-los na mata, mas a liberdade momentânea não compensa o sermão de Kida: “Você é uma filha da Matilha da Meia-Lua, não pode se dar ao luxo de vagar sem os guardiões, blá, blá, blá...” Que saco, só de lembrar das palavras dela já é como se ela estivesse aqui reclamando. Eu até admiro o poder que ela transmite através das palavras e, segundo ela, eu também aprenderei a falar dessa forma com o tempo. Até lá, vou apenas fazendo o possível para aguentar essa baboseira toda. Chega de Kida, estou aqui pra caçar e esquecer a matilha.
Cheguei na clareira de forma sorrateira. Muito bom, tenho três alvos para escolher: um grupo de coelhos, fácil de mais; um lobo solitário dormindo, me recuso a caçar lobos. Não é legal caçar nossos primos e, por fim, um jovem cervo, provavelmente procurando uma parceira para acasalar, perfeito. Encontrei a minha presa.
Espero ansiosamente até que ele entre na mata, no momento em que o faz a perseguição começa. Apesar de jovem, ele já viveu o bastante para saber quando sua vida está em perigo. Ele é ágil, chega a ser divertido correr atrás dele. Eu poderia saltar sobre suas costas e acabar com isso em instantes, mas isso tiraria o prazer da caça, meus instintos falam mais alto do que a estratégia e o prazer da corrida consome o meu corpo até que eu consiga alcançá-lo.
Posso sentir o cheiro de seu medo quando agarro seu pescoço e é como se sua vida se tornasse um fluxo que eu sinto esvair por entre os meus dedos quando quebro o seu pescoço. Foi divertido. Me alimento um pouco com sua carne para repor as energias do dia e permito que os guardiões dividam o resto entre eles. Afinal, os malas se esforçaram pra me acompanhar.
Bem, a diversão acabou, é hora de voltar pra casa. Talvez eu passe na doceria e compre um chocolate pra levar pros filhotes, eles ainda não podem caçar e não é justo que não apreciem algo de bom de vez em quando.
Vamos tornar o final dessa noite interessante, será que os malas conseguem me acompanhar numa corrida até a beira da floresta? Começo a me empenhar na corrida, eventualmente sorrindo para eles na penumbra da floresta, mas algo me chama atenção em um ponto da mata. A corrida pára e fico observando o ponto que me chamava a atenção. Com os guardiões aqui, jamais conseguirei perseguir esse tipo de instinto em paz. Observo o vento soprando e o farfalhar das folhas nas copas árvores, não sei porque, mas meu coração está disparado. Não é medo, é uma sensação que nunca experimentei antes, meu estomago fica embrulhado e um calafrio percorre a minha espinha. Acho que isso quer dizer que, seja lá o que for que está me observando, nós nos veremos de novo. Então, com um sorriso no rosto decido retomar a corrida pra casa. A noite acaba de valer a pena.