quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

Cidade da Noite

Está frio, mas isso não me incomoda, ele faz parte de mim, do que eu me tornei. O frio e a noite sempre foram meus companheiros. Até hoje.

É tarde, a floresta está imersa na noite, mas está longe de ser silenciosa. Salto entre os galhos sem acreditar no que vejo. Uma alcatéia está atravessando a mata e no meio dela uma jovem com não mais do que vinte anos. Ela parece fazer parte da alcatéia, e por algum motivo, eu não consigo parar de segui-la. Eles são velozes, e a menos que revele a minha presença não vou conseguir acompanhá-los.

Alcançamos os limites da floresta. Eu já estava ficando para trás. Deixo que se afastem, seria arriscado e tolo tentar segui-los sem cobertura e, se realmente são o que imagino, me fariam em pedaços. Fico agachado sobre os galhos observando enquanto se afastam. A garota pára enquanto o resto da alcatéia prossegue. Ela olha diretamente para o ponto onde estou e parece farejar o ar. Ela me encara, embora eu esteja certo de que não pode me ver. Aqueles olhos castanhos brilhantes esquadrinham a mata enquanto os cabelos negros esvoaçam para trás com uma brisa da noite. A jovem olha fixamente para o ponto onde estou, as nuvens se afastam levando a escuridão. O luar revela sua pele alva e um traje incomum, que realça as silhuetas do corpo...

– O que estou pensando? – Sussurro para mim mesmo abaixando a cabeça. Distraio-me e quando volto minha atenção, ela se foi. – Droga. – Praguejo baixo.

Saltando para o chão percebo a sorte que tive. Se não houvesse me alimentado a pouco de um lobo, ela teria sentido o meu cheiro, todos eles teriam. Com certeza eles eram Licantropos, também conhecidos entre os eruditos da sociedade mortal como Garou, aqueles que recebem sua condição como um presente e não como uma maldição.

Caminho pela trilha que deixaram, o que é revelador. Há marcas no chão. Eram seis, sem contar a garota, e ela corrida com os pés descalços. Mas o odor que deixaram, leve, porém distinto, é o que mais me intriga. Eu estava certo, eram lupinos. A alcatéia parecia estar caçando, há marcas de sangue pelo caminho, talvez um deles estivesse ferido. Subitamente meus pensamentos vão para a garota e uma angústia profunda me atinge, talvez ela esteja ferida. Balanço a cabeça como que para espantar os pensamentos. – O que há comigo? Era só uma lupina. – Digo a mim mesmo. Meu pequeno amigo, um camundongo branco, se agita no bolso do casaco.

Depois de duas horas caminhando de volta, alcanço os limites da floresta, os limites impostos pelos homens. Nesse ponto paro e contemplo a cidade aos meus pés, onde me sinto mais próximo do que eu fora um dia. Sorrio observando as luzes acesas, o majestoso Neo Plaza, rasgando o céu no centro da cidade, rompendo a cortina de nuvens que protege gente como eu. Mais além é possível ver as docas, do outro lado da cidade, a principal rota de comércio que abastece o lugar.

Começo a descer a encosta íngreme onde me encontro em direção ao interior de uma pedreira. Salto para o chão, meu casaco lembra as asas de um pássaro negro mergulhando. A altura não é um grande problema. Alguns cães latem e escuto o tilintar de suas correntes junto aos portões. Vejo uma velha cabine de vigia com uma lâmpada acesa, mas o vigia parece ter sido vencido pelo frio, consigo vê-lo encolhido em baixo de um cobertor, usando uma touca de lã, sentado, ouvindo um pequeno e velho rádio. Nem o latido dos cães o separa do aconchego da cabine, de qualquer maneira ele só tem pedras para guardar.

Corro alguns metros, apenas para pegar impulso, e salto sobre a grade da pedreira. É fácil escalar o alambrado e me atirar por sobre os arames farpados. Em segundos estou caminhando pela rua. Fecho o meu sobretudo, levanto a gola, e esfrego as mãos em frente ao rosto como quem está com frio.

Ao virar da primeira esquina me deparo com um bando de vagabundos tentando se aquecer em uma fogueira improvisada em um velho tambor de ferro. Eles são inofensivos, e me ignoram, assim como eu a eles. Passos chamam minha atenção, três jovens com casacos pesados, gorros e luvas vem atravessando a rua, no peito de um deles, reluz sobre a claridade do poste um medalhão de ouro com a letra “G”. Não significa nada para mim. Ele veste um casaco azul que se abre quando ele corre até a minha frente estendendo a mão.

– Ô, ô, ô, ô. Calminha ai! – Fala o rapaz a minha frente enquanto os outros se aproximam pela minha direita. Um dos jovens, branco e magro como um faquir, pára ao meu lado segurando a gola do sobretudo.

– Que beleza de casaco, tio. Material de qualidade. – Fala com um ar de ladrão barato, daqueles que roubam bolsas de senhoras idosas. Odeio essa gente.

– Você não sabe que é muito perigoso andar sozinho a essa hora da noite, irmão. Você pode topar com alguém ruim. - O terceiro, um negro forte com um brinco de ouro na orelha esquerda, se aproxima por trás tentando fazer uma voz ameaçadora.

Eles me forçam a entrar em um beco, os únicos que sabem o que está acontecendo são os vagabundos, mas eles não vão se intrometer, com certeza estão felizes por não ser com eles.

– Vai tirando o casaco, pessoa. – Fala o que parece ser o líder, com aquele medalhão dourado sempre balançando. Ele fala fazendo gestos amplos com os braços. Eu fico parado.

– Tá surdo, ô esquisito? Tira o casaco ou você vai saber o que é medo de verdade, irmão! – O negro esbraveja aproximando o rosto do meu ouvido. Eu não resisto à tentação. Respondo com um sorriso escapando dos lábios.

– Eu sou a coisa mais apavorante por aqui, moleque. – As palavras saem arrastadas entre meus caninos, ao mesmo tempo em que meus olhos brilham em tom vermelho sangue. Eu me delicio com o olhar aterrorizado dos três.

O primeiro a morrer é o negro, por um motivo óbvio: ele está mais próximo. Agarro o pescoço dele e com uma mão a vida se vai, junto ao som de ossos quebrando. Os outros dois se afastam, eles não fogem, ainda não entenderam o perigo que correm. O magricela dispara pelo beco, ele entendeu. Em um piscar de olhos já estou parado na frente dele. Ele bate contra o meu corpo e cai no chão. Piso em seu pescoço. Mais um estalo, mais um pescoço quebrado. O líder do grupo se aproxima, ele tenta passar correndo, mas o som da corrente do medalhão o denuncia, eu o agarro pelo braço. O rapaz se desvencilha sacando um canivete, mas continua preso no beco.

– Quem é você? – Ele grita. - O que é você? – Ele já está perdendo a razão. Felizmente, agora o vento está forte e começa a nevar, ninguém irá nos ouvir.

Eu me aproximo, e ele recua, o pavor é evidente. O medo é como um perfume excitante.

– Você sabe o que eu sou, moleque. – Respondo com um sussurro, mesmo sabendo que a pergunta é retórica. O rapaz tropeça nos próprios pés e, mesmo caído, continua a me apontar o canivete. Eu seguro a mão do canivete, torço e giro o pulso, a arma cai no chão que começa a se cobrir de neve. Agarro o medalhão e pergunto olhando em seus olhos.

– “G”? O que significa? – O rapaz tenta articular algumas palavras, mas eu só ouço um balbuciar sem sentido. Solto a mão e o levanto pelo pesado casaco azul, trazendo-o para bem perto de mim. Ele tenta afastar o rosto, mas me olha direto nos olhos. – Você quer viver, moleque? – Pergunto sussurrando entre os caninos. O rapaz não responde, apenas arregala os olhos. Ninguém pode dizer que eu não lhe dei uma opção.

Saio do beco girando o medalhão em uma das mãos. Volto a caminhar pela rua. Os vagabundos me observam a distância, eles com certeza não ouviram nada, mas sabem que aconteceu algo ruim. Antes que eu vire a esquina um deles vai até o beco e sai com o casaco azul, a noite será menos fria para alguns.

Guardo o medalhão no bolso assim que entro na rua seguinte, dou uma boa olhada a frente apenas para constatar que a expressão, “À noite a cidade dorme”, não se aplica aqui. Muitos bares, ao melhor estilo inglês estão abertos, a maioria sobre o regime de: “Até o último cliente”.

Ajeito a gola do casaco e enterro as mãos nos bolsos, enquanto avanço rua abaixo. A maioria dos pubs é bastante comum, janelas grandes ou pequenas, estão sempre abarrotados de pessoas, vítimas em potencial, para mim ou para qualquer outro. O que realmente me interessa são os bares que tem a entrada abaixo do nível da rua. È neles que a realidade parece alcançar o máximo de seu significado. São locais, digamos, mais seletos.

Lembro-me da lupina. Percebo que estou parado de pé na rua, olhando para os bares e sorrindo sozinho, feito um bobo. Uma prostituta gorda está no meu campo de visão, a coitada sorri pra mim achando que estou dando confiança pra ela. Balanço a cabeça tentando espantar a bizarra imagem que me vem à mente. Volto a andar pensando que o inferno pode estar mais próximo do que parece.

Ao longo do caminho passo por muitas vielas, as ruas por aqui são repletas delas. O pior das vielas é que quase sempre tem um filete de água podre correndo por elas, vindo sabe-se lá de onde. As malditas ruelas formam um verdadeiro ninho de rato no mapa da cidade, daí o bairro ser chamado de “Cidade dos Ratos”. A cidade, à noite, pode ser perigosa, uns lugares mais do que outros.

Passo por um cruzamento, os sinais de trânsito estão piscando no amarelo. Ao longe posso ouvir o som de um ônibus se afastando. – Merda. – Praguejo baixo. Vou ter que continuar a pé por mais três quadras. Do outro lado do cruzamento uma figura, enrolada em um sobretudo marrom gasto, está recostada a parede de um velho cinema, daqueles que usavam rolos de fita. O nome do lugar é Cine Néon, o letreiro ainda brilha.

Algumas pessoas estão caminhando pela outra calçada, indo em direção ao centro da cidade. A noite está acabando para alguns e só começando para outros. O homem do sobretudo me observa da penumbra. Fico tentado a ignorá-lo, mas ele gesticula para que eu me aproxime, enquanto tenta acender um cigarro. Assim que chego o reconheço e ele se apruma, oferecendo o maço de cigarros.

– Você sabe que eu não fumo, Vic. – Falo sem mostrar o quanto este encontro está me irritando. Ele dá um trago no cigarro com tanta vontade, que posso ver o filtro queimar até a metade. Logo em seguida ele tem um acesso de tosse.

– Isso ainda vai te matar, meu velho. – Falo fingindo preocupação. É bom ser visto com bons olhos por esses tipos.

– Dra... ine. – Ele tenta falar o meu nome, entrecortado pela tosse. A essa altura a minha preocupação começa a se tornar genuína. É melhor ter um Guardião velho ao seu lado do que um novo pegando no seu pé.

– Droga. – Pragueja ele. – Provavelmente você deve ter razão... – Toma fôlego. – ...isso ainda vai me matar. – Sorrio.

– O que você quer, Vic?
– Você sumiu um tempão...

– E você quer saber onde fui e o que estive fazendo, não é? – Corto o sermão.

O velho sorri e dá mais um trago, desta vez mais comedido.

– Se eu precisasse perguntar tudo isso, eu não seria “o que” sou. – Ele responde sério, cerrando os olhos. Odeio esse cara. Mas o velho tem razão. Não é a toa que ele é o mais antigo na ativa.

– Achou o que procurava na floresta?

– Você é o Guardião. Não sabe? – Respondo em tom de brincadeira, por mais irritante que seja ter que ficar parado na rua conversando com o velho. Eu não gosto do tipo dele, e não gosto dele, mas principalmente, eu o respeito. Sorrio com todo o meu cinismo.

– Vejo que voltou satisfeito. – Ele sorri e se vira para ir embora. Na mesma hora vejo outro homem encostado em um carro antigo, na esquina para onde o velho se dirige.

– Parceiro novo, Vic? – Pergunto descrente. – Você, com um parceiro?

O homem pára e se vira para mim com um leve sorriso nos lábios. – Você sabe como é, Draine. Ao contrário de você, eu não posso viver para sempre. – Ele volta a caminhar.

Eu não preciso de mais nenhuma palavra, não é um parceiro. Ele está treinando um substituto.

O novato abre a porta para Vic. Victorio Relione. Eu me espanto de lembrar o verdadeiro nome do Guardião, e mais ainda de achar que sentirei falta do velho irritante.

Antes de entrar e tomar o volante, o novato me observa por alguns segundos, parece estar surpreso, como se visse um de “nós” pela primeira vez. Apenas por curiosidade eu sorrio com os caninos a mostra, mesmo sabendo que Vic não vai aprovar essa quebra de conduta, especialmente em um lugar tão aberto. O rapaz tenta evitar, mas arregala os olhos, e se recompõe em seguida. Ele entra no Chevrolet 56 que Vic tem desde que o conheci, a cerca de cinqüenta anos. O carro passa por mim, na direção em que eu seguia e Vic acena pra mim.

– Velho desgraçado, sabia que eu estava indo naquela direção. – Sorrio. Definitivamente eu vou sentir falta desse maldito.

Continuo andando, deixando a Cidade dos Ratos para trás e chegando ao bairro antigo. Não tão decadente como o bairro vizinho, apesar de ter as suas semelhanças, o bairro antigo é mais “habitável”. As construções são baixas, em geral não possuem mais do que cinco andares, em sua maioria são casas em estilo colonial.

Um casal e uma menina com uns seis anos passam por mim, vindos da “Cidade dos Ratos”. A menina está com um casaco e um gorro cor de rosa que teima em cair na frente dos olhos. Ela olha para mim e sorri estendendo um caderno de pintura. A mãe, que usa um piercing no nariz com uma corrente pendurada, puxa o braço da menina e a repreende por falar com estranhos. Como se ela mesma fosse uma pessoa comum e vivesse em um lugar como outro qualquer. A sociedade humana é mesmo hipócrita.

Passo por algumas lojas, a esta hora as vitrines estão protegidas por grades e portas de metal. Na esquina já consigo ver o Café Rose, vinte e quatro horas aberto e sempre pronto a oferecer uma refeição quente. Aceno para a garçonete, Danielle. Ela retribui com um sorriso e cintilantes olhos verdes. Noites atrás a salvei de uns pervertidos, desde então ela é parte da lista. Gosto da menina, ela é cheia de vida e está disposta a retribuir de forma incondicional a ajuda. Uma mão lava a outra, é o que dizem.

Uma placa enferrujada indica: Colona. Já havia esquecido o nome do bairro, de tão pouco que é usado. Uma das últimas lembranças daqueles que descobriram a área da cidade séculos atrás. Sigo pela rua principal, em direção ao centro da cidade. Esta é única rua bem pavimentada e conservada do bairro. Por aqui passam os carros fortes que abastecem o banco local e as lojas da vizinhança. O progresso tem que continuar.

A única maldição neste bairro é o descaso, os postes estão falhando ou estão simplesmente queimados, a noite não há segurança de verdade e a população de rua se multiplica como gafanhotos. Sorrio. É o lugar perfeito para alguém como eu.

Alguns carros passam por mim e um dos desgraçados acerta a única e pequena poça que existe na rua, o que me vale um banho de sujeira. Balanço os braços como se fosse possível secar o casaco. Mickey pula para fora do bolso completamente ensopado. O danado dispara pela rua em direção ao antiquário, que já é visível na esquina a frente, bem, ao menos a tabuleta de madeira. Está escrito em letras antigas: “Antiquarium. Se você procura, nós temos”.

Do outro lado da rua ainda existe uma praça com um velho coreto. Muitos bancos estão espalhados ao redor, onde vejo alguns casais namorando e até um pipoqueiro desafiando o frio. As pessoas têm que ganhar a vida.

Logo me vem à mente a imagem da lupina e a lembrança de como ela era linda. Aqueles cabelos negros balançando livres ao vento, contrastando com a pele clara...

– Outra vez. – Me repreendo ao perceber que estou parado no meio da rua sorrindo como um bobo. – Por que ela me fascina tanto?

– Eu não sei, talvez seja o cabelo comprido. – Concordo com a cabeça. Só então percebo que tem alguém falando comigo. Pelo canto dos olhos eu a fito. Uma menina com cerca de treze anos e um olhar sagaz. Ela ajeita o casaco cinza, quase preto, do qual ia saindo um lenço vermelho, como se quisesse ficar mais apresentável. A menina sorri para mim e estende uma cesta de palha cheia de flores.

– Talvez uma dessas possa ajudar. – Ela me oferece uma rosa, olhando para uma mulher que passeia na praça a minha frente. Pego a rosa e ela rapidamente abre a mão com um sorriso angelical estampado no rosto. O mundo é mesmo dos espertos. Olho de cima a menina, o vento sopra e a franja vermelha que sai por baixo da boina vai pro lado. Coloco um dólar na mão da ruivinha que agradece com um polegar, e se vira desejando boa sorte. Antes de atravessar a rua ela ainda aconselha. – Ei, moço... um banho também ajudaria. – Engraçadinha. Ela para no meio da rua e corre de volta para mim.
– Eu sou Carla. – Ela pisca e se vira indo embora. Isso quer dizer que verei essa pestinha por aqui outras vezes.

Balanço mais uma vez os braços e volto a caminhar. A lâmpada do poste mais a frente está piscando, prestes a queimar e deixar o bairro um pouco mais escuro. Olho para o céu e só vejo as nuvens, nenhuma novidade. Paro diante da porta do Antiquário, pulo e bato com força na placa de madeira, ela balança, rangendo nas dobradiças. Pulo de novo e alcanço a chave deixada sobre ela. Abro a porta e percebo que há alguém me observando do outro lado da rua. O homem da às costas e se afasta, indo em direção ao centro da cidade.

– Vou ter que esconder a chave em outro lugar. – Digo a mim mesmo balançando a cabeça. Dou mais uma olhada em volta e, antes de entrar, respiro fundo. Estou em casa.

Por: Alessandro Dantas

terça-feira, 13 de dezembro de 2011

O Verdadeiro Desafio

Poucos prazeres se comparam a correr livremente pela floresta. Sentir o vento contra o meu corpo, a sensação das patas em contato com a terra, os aromas da floresta e o calor da fogueira que fizemos minutos atrás queimando em minha alma.

Por algum motivo, sinto como se Kida também estivesse aqui. Sinto falta de compartilhar esses momentos especiais com minha irmã mais velha. E pensar que eu estava receosa quanto a essa iniciação. Me lembro especificamente da nossa última conversa a respeito. Como eu questionava ela a respeito das tradições e como ela sabia como me fazer concordar mesmo não gostando da idéia. É uma memória que por algum motivo guardo com carinho especial.

– Kida, por que eu tenho que ir pra antiga casa de nossos pais? – Eu sei que já perguntei isso um milhão de vezes, mas Kida nunca me deu uma resposta satisfatória. Minha irmã pode ser a líder do Clã da Meia Lua, mas eu não tenho que me submeter a todas as suas vontades.

– Você sabe que é a tradição. Nós já tivemos essa conversa um milhão de vezes. – Parece que ao menos na contagem nós concordamos.

– Mas... – Tento protestar, mas ela me lança aquele olhar severo de irmã mais velha que age como mãe. Não sei por que eu ainda tento, ela sempre ganha. Kida sempre cuida de mim, é difícil ficar contra ela.

– Você sabe que esse é o nosso costume. É assim que honramos os nossos antepassados. – Tento abrir a boca e ela levanta um dedo. – Sempre que um membro de nosso Clã chega à maioridade ele deve voltar as suas origens. Está decidido, você vai. - Respiro fundo enquanto Kida se levanta com um sorriso, daqueles que faz parecer que nunca houve uma discussão, e sai.

Nunca imaginei que essa seria uma lembrança tão gostosa. Quando volto ao meu presente não faço mais idéia de onde o grande lobo cinzento que me acompanhava está. Droga, perdi ele de vista, com essa eu não contava. Não é como se eu pudesse simplesmente farejar e rastrear um ancião. Acho que só o que me resta então é aproveitar o resto do passeio.

Durante o passeio, percebo que não estou mais apenas vagando pela floresta. Alguém está me seguindo e algo me diz que não é o ancião. Eu definitivamente me recuso a ser caçada no meu próprio ritual de passagem. Seja quem for, vai aprender a não se meter com a princesa dos lupinos!

Se esse espertinho acha que vou ser uma presa fácil, ele veio atrás da lupina errada. Agora que sei que estou sendo caçada, ele vai ter que se mostrar pra me pegar e ai veremos quem sai vitorioso. Com meu caminho trilhado com cuidado, dou algumas voltas para confundir o caçador quanto ao meu destino e evitar uma armadilha e finalmente elaboro a minha própria. Sem qualquer aviso, eu disparo em direção antiga cachoeira que deságua no riacho perto da cabana da minha família. É um lugar bem iluminado pelas estrelas e onde eu tenho como combater em solo familiar.

O caçador é bom, tenho que admitir isso, pois, mesmo com meus desvios e corridas, ele está sempre próximo. Se eu achasse que há mais de um deles jamais iria até a cachoeira, seria fácil ficar encurralada, mas seremos apenas eu e ele, pretendo lutar até que um de nós dois caia. A princesa não vai fugir de seu primeiro combate como adulta. Tenho que tomar cuidado pra que essa coisa de princesa não acabe me subindo a cabeça.

A cachoeira sempre me acalma. Perto dela parece que não há nada de errado no mundo. Em dias normais, o som da água caindo e os aromas da floresta se misturam e fazem com que seja impossível pensar em qualquer outra coisa, mas hoje não é um dia normal.

Ao me aproximar do lago onde tantas vezes já me banhei, nem mesmo um momento de paz me é concedido. Quando me aproximo da água esperando ver o brilho do meu próprio pelo, o que eu vejo é uma das ultimas coisas que eu queria ver hoje: os olhos amarelos e furiosos de Wolfgart me encaram e o pelo negro dele brilha ao se eriçar. Dou um pequeno salto para trás, me preparando para o duelo. Mesmo não querendo ver Wolfgart, se ele veio até aqui pra atrapalhar a minha passagem, então é a oportunidade perfeita pra eu colocá-lo de volta no seu lugar.

Mesmo Wolfgart sendo muito mais velho, ele sabe que eu também sou uma guerreira, justamente por isso ele não me subestima. Ficamos nos rondando por algum tempo antes que a dança comece. O tamanho dele é assustador, ele é um dos poucos com uma forma lupina maior do que a de Kida, mas, como nós dois sabemos, tamanho e força não são o bastante para vencer um duelo de predadores. Como ele é mais forte, espero que ele ataque primeiro. Minha vantagem está em deixar ele pensar que estou com medo.

O ataque vem assim como esperado, a força devastadora do lobo negro se jogando sobre mim e tentando me derrubar para morder minha jugular. Esse maldito não está de brincadeira. Deixo que ele me derrube, mas no momento em que a vitória lampeja nos olhos dele eu faço o meu movimento: minhas duas patas traseiras se apóiam na barriga dele, quando ele prepara a mordida fatal, eu avanço e são as minhas presas que encontram a jugular dele. Sabendo que não conseguiria mantê-lo sob meu domínio por muito tempo, eu uso as patas traseiras em sua barriga para me darem impulso e deslizar para longe dele e ainda conseguir um mais uns arranhões de bônus em seu ventre.

A fúria domina o corpo do lupino negro que avança ferozmente contra mim. Ele lança diversos ataques com as patas e com a mandíbula, mas a minha velocidade é bastante superior a dele, ao menos no que diz respeito a esquivar, não consigo uma brecha para um contra-ataque direto e se uma das mordidas dele me acertar será o meu fim. Preciso de um plano rápido, pois o ferimento no pescoço dele não foi fundo o bastante para fazer com que ele pare tão facilmente.

Os ataques continuam de forma frenética e a dança nos leva de volta a beira da cachoeira e é ai que o meu plano finalmente fica pronto. Me aproveito de minha velocidade superior para tomar um pouco de distancia dele, ficando no limite onde a água permite que eu ainda me movimente bem. Quando ele salta em minha direção, eu sei exatamente o que fazer, a forma negra se aproxima por cima, mas não rápida o bastante para impedir a minha transformação de volta para a forma humana. Meu corpo, ainda encantado com a força e a destreza lupina que rapidamente abandonam a minha forma humana, encontra o seu caminho para desviar do salto e montar nas costas do lobo negro cravando minhas unhas na ferida que consegui fazer com os caninos. O urro selvagem desesperado invade a noite e eu sinto o enorme corpo negro do lobo tremer até seu ultimo suspiro.

Minha respiração rápida combina pouco com o sorriso vitorioso nos meus lábios. Finalmente minha família está livre dessa praga. Desde que nosso irmão, Kael “O Lobo Vermelho”, desapareceu em uma batalha contra os vampiros. Kida, por ser a mais velha das filhas de nosso pai, herdou a liderança do Clã. Para não perder essa liderança, Kida aceitou Wolfgart como seu consorte, mas não como seu marido, o que significa que ele é o terceiro no comando, logo depois de mim. A minha maioridade e a idéia absurda de que em breve terei um casamento (sendo que eu nem mesmo namorado tenho!) seria um golpe terrível para Wolfgart, pois o meu marido (isso soa mais ridículo cada vez que essa palavra aparece) poderia assumir a liderança do Clã em um ano, caso Kida não se casasse segundo as nossas leis. Mas o importante é que agora ele não é mais uma ameaça. Nós finalmente estamos livres.

Meu sorriso triunfante não dura muito e se transforma em pura surpresa quando a luz da transformação ilumina o corpo de pelos negros que estava inerte aos meus pés. Dou um passo para trás assustada e a surpresa se torna pavor quando a luz revela que o lobo negro era na verdade Kida. Eu simplesmente não posso acreditar, é impossível! Aquele era Wolfgart, tinha que ser ele! Eu conheço o cheiro de Kida, os dois não se parecem em nada. Eu não posso acreditar que matei minha própria irmã, eu não posso ser esse monstro. Minhas pernas de repente não possuem mais forças para me sustentar e eu caio em prantos sobre o corpo dela e mesmo sendo impossível é ela quem está ali. Eu acaricio seu cabelo enquanto as lagrimas e os soluços desesperados tomam conta de mim.

Sem que eu tenha tempo de entender como ou porque, Kida tosse um pouco de sangue e seus olhos tristes encontram os meus. Não sei dizer qual delas é a pior sensação, ver Kida morta aos meus pés, ou encarar o desprezo e a desaprovação naqueles olhos outrora tão cheios de vida. As palavras fracas dela são como facas em meu coração:

- Irmãzinha, você nos desgraçou. Com a minha morte o Clã ficará perdido. – Eu choro como um filhote, não há palavras para enfrentá-la, ainda mais agora. – Você não é forte ou esperta o bastante para liderá-los. – Mais uma golfada violenta de sangue. - Você deve entregar o controle do Clã a Wolfgart, agora ele é o único que pode nos salvar. - Ela só pode estar de sacanagem! No leito de morte ela vem repetir o discurso daquele imbecil de quando eu os ouvi falando sobre mim. Isso é inaceitável! Meus sentimentos se misturam. A raiva e a tristeza agora resumem tudo o que eu sou. – Você agora deve ir até ele e contar o que aconteceu aqui. Conte a Wolfgart como você me matou.

Meus olhos se fecham, meu corpo se torna rígido e os meus punhos se serram. Quando eu finalmente absorvo a ultima sentença, meus olhos se abrem sem qualquer tristeza restante, eles agora brilham apenas com a fúria de todos os lobos do Clã da Meia Lua. – Criatura imunda, não importa o quanto você se pareça com a minha irmã, ela nunca seria tão fraca a ponto de entregar o Clã para Wolfgart sem ao menos considerar alguém de seu próprio sangue. Eu sou a princesa dos Meia Lua e não há nada que você ou aquele verme ganancioso possam fazer quanto a isso. – Com minhas ultimas palavras eu afundo a cabeça daquela criatura que se passa pela minha irmã no lago e, com lagrimas contidas nos olhos, eu vejo o seu verdadeiro fim.

Alguns minutos se passam antes que eu possa me levantar. Quero ter certeza de que dessa vez ela está realmente morta. Quando finalmente me convenço de que não haverá outro golpe a ser desferido contra os meus sentimentos, eu olho para a lua e rezo para que os meus verdadeiros ancestrais olhem por mim. É hora de encontrar minha verdadeira irmã e saber o que diabos acabou de acontecer. Saindo da água eu retorno a minha forma lupina e corro de volta para a floresta.

Ao chegar de volta na cabana, o gigante de ébano está mais uma vez a minha espera sentado próximo à fogueira. Eu me aproximo e paro sobre as minhas roupas, onde volto à forma humana e me visto.

Ele nem ao menos me encara até que eu esteja sentada de frente para ele como quando começamos o ritual. Quando nossos olhos finalmente se encontram um calafrio percorre a minha espinha e posso jurar que o vi sorrir por um instante, isso me irrita. Será que ele acha alguma graça no que eu acabei de passar?

- Sua raiva é desnecessária, porém compreensível, princesa. – As palavras dele são calmas como se nada tivesse acontecido.

- Desnecessária? Você só pode estar brincando! – Talvez ele esteja calmo, mas antes que eu possa pensar com clareza meus sentimentos explodem em palavras furiosas. - Eu acabei de lutar com Wolfgart e de assassinar a minha irmã! Isso é loucura! O que está acontecendo aqui? O que eram eles realmente?

- Eu a aprovei no meu teste, mas os espíritos da Meia Lua precisavam testá-la também. Eu lhe dei a ilusão de que o teste estava terminado, pois é exatamente assim que o será o seu reinado. Quando pensar que um problema está resolvido outro maior irá surgir, não há tempo para descansar, não há uma pausa. Os seus inimigos estarão sempre prontos para tirar vantagem de qualquer fraqueza que você venha a demonstrar. Os espíritos fizeram com que o seu maior inimigo aparecesse para enfrentá-la. Você foi caçada e confrontada e ainda assim saiu vitoriosa, apenas para ver o seu maior medo se tornar realidade. Sua irmã morta pelas suas ações, o Clã caindo em desgraça, porque você não soube distinguir o verdadeiro inimigo, mas, mesmo assim, você superou o choque e conseguiu reverter a situação, desmascarando a farsa dos espíritos. O teste terminou de verdade quando você finalmente superou todos os desafios e se levantou de cabeça erguida.

- E por que Kida nunca me contou sobre esse teste? Por que não fui preparada para enfrentá-lo? – Pela primeira vez me sinto realmente abandonada, como se não houvesse mais ninguém cuidando de mim.

- Porque esse era o seu desafio e sua irmã não lhe faria bem algum lhe contando sobre ele, assim como você não deve contar às futuras gerações de governantes. O teste é o que os torna poderosos o bastante para liderar o Clã. – As palavras dele fazem sentido e eu me sinto um pouco infantil pelos meus sentimentos, mas mesmo assim não posso negar que eles existiram.

- O seu reinado ainda terá muitos outros testes onde nem todos os inimigos estarão ao seu alcance. Caberá a você decidir como lidar com cada novo desafio, foi para isso que nós a preparamos. – O gigante de ébano termina de falar e se levanta, eu instintivamente faço o mesmo.

- Espero que no nosso próximo encontro esteja mais receptiva a minha presença, princesa. – Apesar de toda a minha revolta, não consigo evitar um certo sentimento de gratidão pela lição dele e um rápido sorriso se forma no meu rosto.

- Eu só preciso de um bom banho, seguido de uma maravilhosa noite de sono e garanto que amanhã meu humor estará bem melhor. – Eu digo me espreguiçando.

A fogueira se apaga e a fumaça cobre o gigante de ébano que desaparece antes que a mesma tenha desaparecido por completo. Eu ainda fico ali por alguns minutos processando o que acabou de acontecer. Ainda não decidi como lidar com tudo isso, mas por hora vou apenas aceitar que finalmente acabou.