domingo, 17 de outubro de 2010

Estrelas no Céu


Posso sentir cada músculo do meu corpo congelando quando as palavras dele ecoam em minha mente. Não importa o quão preparada eu ache que estou, só terei certeza quando for testada. Então, com toda a coragem que possuo eu dou um passo a frente e olho nos olhos dele:

- Eu estou pronta para o teste. – Eu esperava que minhas palavras fossem sair tremidas, mas meu tom é sincero e decidido. Espero que ele também tenha entendido dessa forma.

O gigante de ébano sorri, se é que se pode chamar aquele movimento minúsculo dos lábios dele de sorriso. A única coisa entre ele e eu são as chamas da fogueira que queima a minha frente. De repente, ele se senta e continua a me encarar, as chamas diminuem até pouco abaixo da altura de seus olhos. Não sei como ou por que, mas tenho a certeza de que eu devo repetir o gesto, então me sento também com as pernas cruzadas. Nossos olhos se encontram e eu novamente me sinto segura, de alguma forma é como se fôssemos velhos amigos que se reencontram e estão dividindo histórias ao redor da fogueira.

- Descruze as pernas, jovem princesa. Hoje suas energias devem correr livres por seu corpo. – Por mais que as palavras em outro momento pudessem parecer duras, agora me soam apenas como um bom conselho de um amigo mais velho. E é claro que eu devia me lembrar disso.

Obviamente eu obedeço e fico abraçada às minhas pernas. Parte de minha consciência me diz para me desculpar, mas minha intuição deixa claro para mim que esse tipo de palavras não são necessárias entre nós dois.

O silêncio se faz mais uma vez presente, os únicos sons são o vento soprando entre as árvores e a lenha estalando na fogueira. Os olhos dele não desgrudam dos meus nem por um segundo; pergunto-me o que ele estará vendo? Subitamente, ele começa a falar.

- Vou lhe contar uma história, jovem princesa. A história do nosso povo. – Sinto meu coração palpitar de alegria por ele dizer “nosso povo”; ser considera como uma igual por alguém do porte dele é, com certeza, algo de se ter orgulho. – Quando os antigos deuses criaram o mundo, os mortais e os lupinos cresceram separados, enquanto eles montavam suas cidades e se preocupavam com suas guerras religiosas, nós vigiávamos da floresta. O homem, um dia, já soube sua origem; já deu valor à floresta, pois ela sempre esteve aqui para alimentar e proteger a ele. A floresta nada mais é do que a vida do planeta e essa, sim, é a maior das manifestações divinas, a vida. Então, nós, os lupinos, assumimos o dever de proteger a vida que os humanos abandonaram. – Ele faz uma pausa. Suas palavras penetram minha mente com total naturalidade, como nenhum professor jamais conseguiu fazer. Até porque nenhum professor tentou me contar sobre as minhas verdadeiras origens.

Meus pés em contato direto com a terra me fazem sentir ainda mais à vontade com a história, como se eu realmente fosse parte da vida do planeta. Ele parece saber o que se passa em minha mente:

- Deite-se, jovem princesa. Deixe que as grandes forças da natureza se unam ao seu corpo e partilhem comigo o prazer de narrar o restante da história.

Novamente eu obedeço e sinto minha pele se aconchegar na terra. De fato tenho a mesma sensação de quando era criança e me deitava com a cabeça sobre o colo de minha mãe onde parecia que o mundo e os problemas não mais existiam. Ali eu estava sempre segura.

Ele permanece em silêncio como se me dando tempo para, de fato, interagir com a terra. Por alguns segundos permito que meus olhos se fechem e minha consciência se una, de fato, à natureza. Quando novamente abro os olhos, já me sentindo de fato como parte da terra, deparo-me com a imensidão do céu repleto de estrelas. O gigante negro não está mais no meu campo de visão, mas mesmo assim eu sei que ele está sorrindo, de algum modo eu sei. Nesse momento estamos conectados através da terra e do fogo. Enquanto me perco admirando as estrelas, ele retoma a narrativa:

- Com relação à natureza, pode-se dizer que quando o homem começou a redescobrir sua missão como protetor da vida, nós, os lupinos, já éramos bem experientes nisso. Quando o homem seguiu o seu caminho de autodestruição, o mais sábio de nós sentiu pena deles. Ele reuniu todos os lupinos e disse a eles que nós assumiríamos o papel de guardiões sozinhos, até que os homens se lembrassem de sua verdadeira missão. O universo é o nosso lar e é para ele que nós voltamos quando nossa missão está cumprida. As estrelas que você agora observa com carinho e o sentimento que você não sabe descrever, mas na verdade não passa de uma saudade do seu passado, são o maior mérito do nosso povo. Se um lupino foi leal à natureza e dedicou sua vida à busca de conhecimentos para ajudar as gerações futuras a prosseguir com a nossa missão, então nossos espíritos evoluem e tomamos o nosso lugar junto aos nossos antigos irmãos lá no céu. Mas nem todos os lupinos vão para lá; nós temos que merecer isso, caso contrário nosso espírito se desfaz e é absorvido pela terra para que, no futuro, possamos voltar a exercer o papel de guardiões em treinamento.

Não tenho palavras para traduzir o significado disso tudo para mim; de repente é como se eu tomasse ciência de todos os meus ancestrais olhando por mim, lá de cima, em cada uma daquelas estrelas brilhantes. E posso dizer que nunca me senti tão bem. Quando percebo que ele não vai retomar a fala, eu me sento novamente e seus olhos estão fixos em mim. Agora é a minha vez de falar.

- Então, como princesa, é o meu dever garantir que todos aqueles por quem eu sou responsável tenham condições de conquistar o seu lugar junto aos nossos ancestrais.

Ele me olha intensamente e completa:

- Onde houver escuridão, sempre deve haver, também, a luz. Lembre-se sempre disso e você estará pronta para liderar o seu povo. – Ele faz uma pausa e se levanta. – Enquanto essa chama ainda queimar, nós devemos aproveitar a noite como parte da natureza. – Ao terminar de falar, ele se levanta e tira as poucas roupas que vestia. Com um sorriso no rosto, e os olhos repletos de emoção, eu faço o mesmo.

No segundo seguinte, ao terminarmos de nos despir, a forma do gigante de ébano se ilumina por completo e ele se torna um imponente lobo de pelos cinzas e uma enorme marca branca no peito; seu tamanho é bem superior ao de um lobo comum. Quando a luz toma o meu corpo, eu também assumo a minha forma natural, um lobo branco e cinza, não tão grande quanto ele, mas ainda assim um pouco maior do que um lobo comum. Assim sendo, nós adentramos a mata. É hora de deixar a natureza nos guiar...