sexta-feira, 2 de janeiro de 2015

Conflito de Lealdades

Bianca me fez trilhar um caminho especialmente tortuoso para chegarmos ao nosso objetivo. Ela sabe que odeio desvios e caminhos mais longos que não sejam extremamente necessários, mas, mesmo assim, ela insiste em me fazer tomá-los. Inferno, ela sabe exatamente como entrar na minha pele e me fazer seguir o curso dela ao invés do meu.
Então, mesmo após sairmos da cidade, ela me conduziu pelos caminhos mais impróprios e menos trilhados da floresta local. Cada vez gosto menos de pra onde isso está indo. Bianca não atrelaria seu espírito a qualquer menina, ela certamente escolheu alguém especial, a menos que não tenha tido muita escolha, mas, assim como na maioria dos assuntos, dificilmente ela iria me contar algo a respeito caso eu perguntasse. A ideia de que toda e qualquer informação tem que partir dela é algo com que Bianca sempre se identificou e, para meu infortúnio, é também uma característica marcante dos habitantes do mundo espiritual. Somando as duas coisas, bem, vai ser impossível fazer com que ela me diga algo apenas por que eu perguntei, então é melhor apenas seguir calado, por mais que a irritação acabe ficando absolutamente clara nas feições do meu rosto.
Pouco tempo após iniciarmos a trilha, mesmo que pra mim tenha parecido uma eternidade, algo me chamou a atenção. Não algo natural, ou simplesmente algo que eu não esteja acostumado por não ser adepto a pratica de exercícios como trilhas e caminhadas, algo sobrenatural, um chamado. Eu não era o único ali que possuía algum tipo de poder.
Não é do meu feitio atacar toda e qualquer criatura que se aproxime de mim, principalmente em vista do fato de estar afastado desses círculos a tanto tempo. Então apenas me preparei, na defensiva eu teria uma chance de reconhecer o meu atacante, se é que era um atacante, e preparar a melhor tática de contra-ataque. Droga, já não era ruim o bastante ter que ir atrás de uma garota qualquer porque Bianca decidiu prender espírito a ela?
Parando na trilha, procurei em volta pelo espírito e não a encontrei em parte alguma, isso está ficando cada vez pior, não deveria ter deixado que o chamado me desconcentrasse tanto, eu realmente estou enferrujado e isso não é nada bom para mim, para Bianca e principalmente para a menina.
Com uma postura defensiva contra a maior árvore que pude encontrar ao meu redor e a calibre doze em punhos (não importa se você é um mago, um exorcista, anjo, demônio, fada, ou seja lá que diabos você for, dificilmente algo fará mais estrago na sua forma corpórea do que uma calibre doze), esperei que o meu oponente se revelasse... espera, oponente? Foi apenas um chamado porque diabos estou tão pronto pra iniciar um combate? Preciso me controlar melhor ou acabarei cometendo exatamente o tipo de erro que estou querendo evitar.
Com essa ideia em mente, tentei respirar o mais fundo possível e gritei a plenos pulmões: Se você quer falar comigo, eu estou aqui e não estou pra brincadeira. Mostre-se de uma vez! - Não, eu não sou bom em ser cordial, especialmente quando não sei com quem estou lidando.
Alguns sons de passos vieram em minha direção e eu levantei a Winchester pronto para um ataque, mas o mesmo não veio. Ao invés disso, quem apareceu em meio as árvores a frente foi Hank Zaccary, alguém que estava ao meu lado quando… quando eu deixei Bianca morrer.
- Acalme-se, Major. Você não vai querer atirar num velho amigo apenas por receber um chamado, não é? - Disse o homem saindo da mata, o bastão de carvalho a sua frente, as vestes negras em torno do corpo esvoaçando em suas pernas sem deixar nada do que estava dentro delas a vista, o chapéu de aba escondendo suas feições e a voz que, por mais que tivesse um tom apaziguador e ameno, ainda me causava calafrios.
Eu não pude evitar um sorriso enquanto abaixava a calibre doze. - Hank, achei que faria frio no inferno antes que voltasse a vê-lo, meu amigo. - O reencontro era realmente uma surpresa tão agradável quanto inesperada, ao menos esse foi o meu primeiro sentimento a respeito. No caminho para abraçá-lo, um pensamento me veio em mente: primeiro o espírito de Bianca me procura e faz com que eu inicie uma jornada por sua alma, (Não, os outros motivos não são os meus, são os dela e, mesmo que eu jamais vá admitir isso em voz alta, o meu é apenas reparar a minha falha com ela), agora, Zaccary aparece diante de mim? Se isso não é um grande sinal de problema, eu não sei o que é.
Hank percebe minha exitação e decide me encontrar no meio do caminho. Apesar de abaixada, a Winchester ainda está nas minhas mãos. Ainda há alguns passos de distância, ele reinicia o diálogo:
- Velhos hábitos não morrem fácil, hã? Ainda não confia em nenhum membro do Conselho? - Um pequeno sorriso, não tão sincero, aparecia em seus lábios com as palavras.
- Usuários de magia que se acham superiores aos demais mortais e não interferem em assuntos sobrenaturais a menos que lhes afetem diretamente? Definitivamente não. Eu me afastei por um motivo. -  Minhas palavras são duras, mas merecidas o Conselho de Magos nunca moveu uma palha a meu favor, mesmo quando a vida de inocentes, como Bianca, estivessem envolvidas.
Mesmo sobre a sobra do chapéu, um leve brilho incandescente passou por seus olhos. Meu comentário não passou despercebido.
- Direto ao ponto como sempre, Major. Achei que poderíamos ter uma conversa civilizada como velhos amigos antes de falarmos de negócios. - Agora o rosto dele estava levantado, os olhos penetrantes fixos nos meus, as feições envelhecidas duras com seriedade e a barba feita deixando visíveis as marcas do tempo.
- Com Hank Zaccary, meu amigo e antigo companheiro eu sempre teria tempo para uma conversa amigável há muito atrasada, mas com um agente do Conselho, me convocando com magia e se apresentando em vestes formais, bem, com esses a minha Winchester tem mais a dizer do que minha boca. - Por dentro eu estava rezando para que minhas proteções estivessem em dia, eu não renovava os rituais há muito tempo e esperava nunca ter de fazer isso novamente, aparentemente eu estava errado novamente, mas jamais deixaria que Zaccary se quer suspeitasse disso.
Hank não se moveu bruscamente, apenas deu um passo pra trás deixando que o bastão de carvalho, com mais runas inscritas do que eu me lembrava, (o maldito se manteve bastante ocupado enquanto eu me afastei), ficasse exatamente a sua frente, como uma barreira de proteção. - Ainda não há necessidade de guerrearmos, exorcista. - A palavra veio carregada com um tom perjorativo, o Conselho não lida muito bem com aqueles que lhes viram as costas, e Zaccary tomou meu afastamento como algo pessoal.
- Se você diz que “ainda” não há necessidade, quer dizer que veio atrás de mim procurando por isso, diga o que quer de uma vez, Zaccary. - Eu respondi bufando. Certamente o fato de chamá-lo pelo sobrenome, como fazemos em meios formais, assim como a trava da minha arma sendo liberado, não passaram de forma despercebida, um círculo se folhas ao redor de Hank pegou fogo enquanto o mesmo murmurava algo em latim ou em qualquer outro idioma que eu jamais saberei qual é.
- Se é assim que quer conduzir as coisas entre nós, que assim seja. - Ao falar ele bateu a base do bastão no chão fazendo com que o círculo se acendesse. - O Conselho de Magos o acusa de interferir com assuntos do meio espiritual, assistir na fuga prisioneiros de guerra entre os planos e assassinar três seres místicos. O que tem a dizer em sua defesa.
Minha vontade foi de disparar a Winchester imediatamente, mas, além de ele ser alguém que conheço e costumava considerar um amigo, o choque das palavras me deixaram completamente atordoado. Mesmo com o nosso passado, como diabos Hank tinha a coragem de me acusar de assassinato? Apesar de todas as nossas diferenças, sempre tivemos um grande respeito um pelo outro, ele só me acusaria de algo assim se tivesse provas incontestáveis de que eu seria culpado, o que é totalmente impulsivo, uma vez que eu se quer faço ideia do que ele está falando.
- Hank, eu não faço ideia do que você passou durante esse anos, mas o que diabos você pensa que está dizendo? Será possível que você não percebe o absurdo do que acaba de dizer? Por mais que o conselho tenha deturpado a sua percepção da realidade, pelos deuses.. você ficou completamente louco? - Minha reação o deixou quase tão surpreso quanto eu mesmo estava. Ele sabe que eu jamais mentiria pra ele em algo assim, mas, ao mesmo tempo, ele tinha o um dever para com o maldito Conselho. A expressão de surpresa em seu rosto deixou claro o conflito de lealdades dentro dele. Acreditar em um velho amigo, ou na verdade do Conselho?
Apesar da perplexidade estampada no rosto, Hank conseguiu manter a voz indiferente: - Essa é a sua defesa? É tudo o que tem a dizer? - E lá se foram os anos de amizade e companheirismo, a lavagem cerebral do Conselho de Magos venceu.
Eu suspirei e ainda relutante com o quanto meu amigo havia sido dominado disse: - Eu sou inocente e você deveria saber melhor do que me fazer dizer isso, deveria ser óbvio! Que inferno, eu não sei o que o Conselho fez com você, mas nos conhecemos há um longo tempo, você deveria saber que eu jamais admitiria algo tão absurdo. Nós costumávamos combater exatamente esse tipo de ameaça e agora você me acusa de ser a ameaça? Será que o Conselho deixou algum resquício da sua personalidade?
Com um outro suspiro ele também respondeu: - O Conselho dos Magos possuí provas de seu envolvimento e de sua culpa, a ordem pela sua cabeça foi dada, eu tomei pra mim a responsabilidade de vir atrás de você justamente pelo nosso histórico e pra lhe dar a chance, com uma vã esperança, de que você pudesse refutar as acusações. Minhas esperanças se provaram falhas, talvez a noção de que o nosso passado iria interferir no nosso julgamento seja o que impulsiona esse teatro demoníaco. Mas sejam quais forem as suas motivações e planos, eles terminam aqui e agora. Essa é a sua ultima chance de se render e justificar suas ações perante o Conselho. Caso contrário, não só seus planos, mas sua vida, terminam aqui e agora. - Apesar da dúvida clara em seu coração, Hank Zaccary era agora apenas um agente do Conselho, o confronto era inevitável.
Por mais rápido que o bastão dele pudesse se mover para disparar algum tipo de conjuração sobre mim, eu só precisei levantar a calibre doze e puxar o gatilho. Enquanto o disparo penetrava sua carne destruindo boa parte de seu torço, deixando na floresta ao nosso redor uma enorme mancha de sangue coberta de pele e restos humanos, o cajado escapava de suas mãos caindo ao lado do restante do corpo. Um humano normal teria morrido instantaneamente, mas Hank não era só um humano, ele era um mago, um membro do Conselho, o que quer dizer que ele possuía poder o bastante pra enfrentar e resistir a quase qualquer coisa sobrenatural que fosse jogada contra ele, mas não ao disparo de uma calibre doze. Disparar uma arma nunca me doeu tanto.
Com o baque do corpo e do cajado no chão coberto de folhas eu corri até o corpo do meu amigo caído. Com os olhos repletos de lagrimas e segurando sua cabeça no meu colo, eu ouvi suas ultimas palavras: - Bianca.. Depois da morte dela.. Você mudou.. - Suas palavras eram entremeadas com tosse e golfadas de sangue. - A morte dela.. não justifica a morte de inocentes… Você costumava saber disso… Eu falhei por acreditar que você ainda era o homem ao lado de quem eu lutei… Eu falhei por acreditar que poderia trazê-lo de volta pra luz… - Essas foram as ultimas palavras de Hank Zaccary, fodam-se os títulos, foda-se o Conselho, ele era meu amigo.
Repleto de pesar e tomado por um sentimento de vingança, eu fechei os seus olhos enquanto as lágrimas marcavam meu rosto. Meu amigo morreu pelas minhas mãos acreditando que eu era um assassino. Agora eu iria caçar os responsáveis. Nada mais importava, eu iria fazer justiça. Usando o cajado dele para me reerguer eu disse apenas: - Eu não sei quem te levou a isso, mas, seja quem for, eu vou te vingar, nem que isso me custe a vida, eu me recuso a perder mais um amigo pela falta de senso do Conselho. Agora é pessoal!
Quando o efeito das mágicas que mantinham o espírito de Bianca afastado passasse, eu teria que explicar a ela o que acontecera e como mais um dos nossos companheiros havia morrido, dessa vez pelas minhas mãos. Esse sangue jamais seria lavado, mas definitivamente ele seria vingado!

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012

O Ultimo Forte Elfico

A tarde chegava ao fim e a turba finalmente invadira o Forte do Carvalho. O cheiro de queimado se espalhava por toda a terra devastada. Todos os povoados próximos a floresta já podiam avistar a fumaça negra que se erguia da pira que um dia fora uma fortaleza élfica detentora de magia e poder.

Devia faltar pouco agora, ou ao menos assim ele pensava. Aqueles homens não poderiam ser loucos o bastante para ficar tão a vista na floresta durante a noite e esperar sobreviver. Todos sabem que tipos de seres atravessam aquelas matas ao cair da noite.

O elfo tentou se levantar, mas o corte em suas costas era profundo de mais para isso e a flecha em seu ombro trouxe imediatamente a memória de como ele fora parar ali. Vencido pela dor e pelo conhecimento que lhe dizia que era impossível sobreviver àqueles ferimentos, o elfo optou apenas por observar os momentos finais de seu antigo lar enquanto o sangue escorria para fora de seu corpo e os sentidos começavam a lhe faltar.

Ao menos ele morreria com honra, mantivera sua espada em punho e a levaria a herança de sua família consigo para o outro mundo. Sua morte não seria lembrada. Não fora um herói épico. Apesar de sua brava morte defendendo seus irmãos em uma batalha que há muito já estava perdida, a história é escrita pelos vitoriosos, e nenhum deles se importaria com o guerreiro que lutou contra eles e derrubou cinco de seus homens antes de ser derrubado. Não, na história dos homens não havia lugar para um herói élfico.

Com esse triste pensamento em mente, o elfo se preparava para fazer sua passagem para o outro mundo, mas, ao que parece, o universo ainda tinha uma ultima surpresa para ele antes de sua partida. Um guerreiro humano que vasculhava o campo em busca de feridos o encontrou. Sua armadura, coberta de sangue e fuligem, não mais brilhava com o crepúsculo, a espada em punho pingava com sangue de dezenas de oponentes, dezenas de elfos que morreram defendendo o seu lar. Devido à posição do sol por de trás do homem, era impossível ver o seu rosto, mas o som de sua voz rouca atingiu o elfo como um trovão.

- Como se sente, elfo imundo? Acha que ainda pode ser um bom desafio para minha espada? – Aquela voz era conhecida, aquela fúria vingativa só poderia vir de um homem.

- Creio que não, velho companheiro. Não poderei mais participar de sua cruzada sanguinária. – Disse o elfo recusando-se a responder ao desafio.

O homem aproximou a ponta da espada da garganta do elfo, mas, ainda assim, não obteve reação alguma. Não haveria um ultimo combate, não com aquele elfo.

- Sua era finalmente chegou ao fim. É o momento de homens tomarem o que é seu por direito.

- Esta terra nunca foi sua. Os homens ainda são muito imaturos, não estão prontos para governar este mundo ou qualquer outro. Era o papel dos elfos ensiná-los a sobreviver e a cuidar da terra. Mas em seu ímpeto incansável vocês nos destruíram e condenaram a todo o planeta no processo. – A voz do elfo agora se tornava cada vez mais fraca. - Vocês simplesmente ainda não estão prontos.

- Não, elfo. Vocês pregam a segurança do mundo para manter o domínio da magia. Vocês escravizaram o nosso povo com esse poder. Eu perdi dois filhos para o seu povo. E na audiência onde busquei justiça, - A voz do homem, outrora onipotente e poderosa como um trovão, agora se enchia de mágoa e dor. O elfo não podia enxergar suas feições, mas tinha certeza de que lagrimas desciam de seus olhos. - Só o que você me disse, foi que meus filhos tentaram conhecer o proibido e que os elfos não poderiam permitir que o balanço do universo fosse perturbado. Mas isso não é verdade. A verdade é que não foi por isso que meus filhos morreram. – A tristeza agora se tornava fúria e o elfo sentia o som da morte se aproximando nas palavras daquele homem. Ele não teria tempo de morrer por suas feridas. Aquele era o homem que daria fim a sua vida, o homem que ele acreditava ser destinado a viver toda sua vida apenas um camponês responsável por cultivar terras. – Os meus filhos morreram, porque descobriram o seu plano, elfo. Meus filhos morreram, porque viram as armas mágicas de destruição com as quais vocês destruiriam a todo o meu povo!

A fúria do homem fazia com que a espada tremesse em sua mão. A qualquer momento ele poderia enfiá-la na garganta do elfo e terminar aquilo. Mas sua mágoa era grande e terrível de mais para ser aplacada pela morte, ele queria entender algo que o elfo julgava impróprio para a mente humana. Ele queria entender os preceitos da magia.

- Diga-me, por que vocês possuem um desejo tão grande de morrer? Não entendem que com a morte dos elfos o seu destino está selado? Os homens são impetuosos e arrogantes de mais para manipular a magia, por isso não a demos a vocês. Homens agem com emoção, atacam mesmo quando sabem que a luta está perdida. Suas vidas são sacrificadas por nada todos os dias e você deseja culpar os elfos por matar aqueles que poderiam condenar a todos. – A voz do elfo agora se recuperava um pouco, ele se sentia ultrajado com as acusações do homem. E, mesmo a beira da morte, ele não poderia permitir que o orgulho de sua raça fosse tratado daquela forma. - Não, humano. Vocês não estão prontos para viverem sozinhos!

Tomado pela fúria, o homem levantou o elfo do chão imprensando-o contra a árvore e deixando seus rostos a uma respiração de distancia. A dor percorreu todo o corpo do elfo ao ser levantado, mas não importava mais, já era hora de morrer.

- Entenda de uma vez, elfo! Nós não precisamos de sua magia para sobreviver. Vencemos essa guerra justamente por conta de nossas emoções. Vocês sempre julgaram que, por sermos menos numerosos e não termos acesso a magia, jamais iríamos nos impor e nos lançar num combate contra vocês. Esse foi o seu maior engano. Os anos que posaram como nossos algozes nos deram a força que precisávamos para virar o seu jogo. Vocês nos deram a força que precisávamos através de nossas tristezas e, agora, finalmente estamos livres de vocês. Avise ao seu deus que este mundo agora é nosso e que os nossos filhos serão vingados! – Com essas palavras, o elfo sentiu a espada do homem atravessando seu peito e rasgando suas entranhas. Seu corpo se tornou frio, seus sentidos desapareceram juntamente com sua consciência e a espada de sua família agora jazia no chão, aos seus pés, com o sangue daquela que a empunhava escorrendo sobre ela.

Era o fim, as emoções humanas triunfaram sobre o conhecimento dos elfos. Uma nova era se iniciava...

domingo, 22 de janeiro de 2012

Elos

“... e ele também não era o que eu procurava, ainda estava abaixo das minhas expectativas.

Mas a busca não foi de todo perdida. Deparei-me com uma estranha atividade Lupina nos arredores da cidade, e por algum motivo, não consigo tirar da minha cabeça a jovem lupina do grupo.

Arkon Draine.”

Coloco a caneta ponta de pena na gaveta da mesa e me espreguiço, é um velho hábito. Por um momento volto minha atenção para a lupina, desta vez conscientemente. – O que ela fazia lá? – Falo olhando para o teto. O velho ventilador está parado a tanto tempo que as pás estão cobertas de teias. Estou certo de que não se tratava de uma simples caçada. O grupo não levava carne ou peles. Lembro com nitidez do último momento em que a vi. – O que você fazia lá? – Pego o diário sobre a mesa e o tranco na gaveta.

Olho para a janela, um luzir contra o vidro empoeirado me alerta que já é dia. Abro as cortinas e observo a rua. Se fosse em qualquer outro lugar eu estaria recolhido a escuridão, mas não aqui, não nesta cidade. A penumbra que envolve a cidade é como uma segunda pele, ela sempre está lá, é por isso que os postes nunca se apagam completamente. Não posso me expor diretamente à luz do dia, mas já é um começo.

Do outro lado da rua vejo um homem parado observando o antiquário. A mesma pessoa da noite passada. Cabelos curtos, casaco preto, mãos enterradas nos bolsos e um cigarro na boca. Há algo errado acontecendo. Pego o sobretudo no cabideiro e olho a cama arrumada, faz dias que não a uso e ela parece convidativa, ainda que isso não passe de mais um hábito.

Corro para as escadas e logo estou no primeiro piso, na loja. Sinto um frio crescente. O mais estranho é que o frio é uma situação comum pra mim, mas desta vez fico incomodado. Paro e observo o interior do antiquário, as peças mais exóticas estão trancadas em armários de vidro reforçado, e as mais misteriosas em um compartimento secreto. Por todos os lados há mercadorias: cadeiras, mesas, tapeçarias, roupas, em fim, um pouco de tudo.

A sineta da porta de entrada toca. Alguém está tentando entrar. Vou até a frente da loja e vejo Victorio por uma das janelas. Fico de mau humor instantaneamente. Abro a porta.

– Precisamos conversar, Draine. – O velho é direto. Dou uma olhada para os lados e o mando entrar com uma das mãos. O homem ainda está parado do outro lado da rua. Sinto o cheiro de encrenca. Tranco a porta e coloco a tabuleta de “fechado” na janela.

– O que está havend... – Ele estende a mão para que eu me cale. Não é próprio dele. O velho é irritante e até presunçoso a maioria das vezes, mas nunca tolo a ponto de me destratar sem um bom motivo.

– Draine, você sabe que estou saindo. – Ele caminha até a janela e fecha as persianas. – Estou arriscando muito em vir aqui, mas... – Ele se vira e me encara com um olhar sério, daqueles que só se vê em pessoas de caráter muito forte. – O Senhor da cidade está recrutando, Draine. – Ele senta em uma velha cadeira de balanço da época da guerra civil.

– Do que você está falando, velho? – Ele levanta o braço novamente, seus olhos verdes, quase brancos de tão claros, percorrem o ambiente apressadamente. Nunca o vi tão assustado.

– Você o conhece bem, Draine. Ele acredita que uma velha profecia está para se cumprir. Por isso está arregimentando... – Ele tosse e tira um lenço branco do casaco, quando afasta o lenço da boca vejo uma mancha vermelha e imediatamente sinto o distinto cheiro do sangue humano.

- Calma aí, meu velho. – Pego um copo com água na pequena geladeira que mantenho na loja para atender os clientes mais exigentes, aqueles que levam horas para se decidir e escolher. – Tome. – Ofereço. – O que você está falando não faz o menor sentido. Se Mikael tentar fazer isso, a sua organização vai transformar a vida de todos em um pandemônio. E isso não será bom para nenhum de nós. – Vic me ouve enquanto bebe um gole curto.

– Draine, escute. – Ele faz uma pausa para respirar. – Ele virá atrás de você. Ele conhece o seu potencial. – Agora eu fico realmente confuso, que história é essa de “meu potencial”? – Mikael teme ser destituído. Ele acredita que um “antigo” está para despertar. Outros já estão se mobilizando, não são apenas os vampiros. Guardiões, Lupinos e outros licantropos... – Ele tosse outra vez.

– Por que está me contando tudo isso, Vic? – Pergunto secamente, a final os Guardiões não se interessam pessoalmente por nenhum de nós. Vic parece controlar a tosse e me olha diretamente nos olhos.

– Escute, garoto. – Ele esquece que sou muito mais velho do que ele. Os mortais freqüentemente fazem isso. – Não é certo, mas gosto de você. Sei que não é essencialmente “mau” como a maioria dos outros. Sei também que você vai fazer a coisa certa quando chegar à hora... – Outro acesso de tosse. Pra piorar esse sentimentalismo todo está me irritando, principalmente porque eu já não sei se odeio mais o velho, ou o fato dele estar tentando me ajudar. Aproximo-me de Vic.

– Você está enganado. Eu sou muito pior do que qualquer um que você já conheceu. – O desgraçado não só me olha direto nos olhos, como ainda da um leve sorriso. Não sei por que não o mato ali mesmo.

– Talvez você realmente acredite nisso, Draine. Mas a verdade é que você se importa. – Ele sorri e, antes que eu possa falar, continua. – Você viu aquele homem do outro lado da rua? Ele está aqui para recrutá-lo. Está esperando o momento certo. – O celular dele toca. - Hmm. Parece que a minha carona está chegando. – Ele se levanta. – Tente ser legal com Brian. Um dia ele pode salvar a sua vida.

- Brian? – Pergunto, mas a resposta vem imediatamente a minha cabeça. – O seu parceiro.

- Não, Draine. O meu substituto. Ele já está pronto. Apenas um pouco verde. – Ele destranca a porta e sai tossindo. Acho que essa é a última vez que o verei. A porta se fecha e eu cerro os punhos. Mas que diabos, vou mesmo sentir falta desse maldito. Ele sai me deixando muito no que pensar.

Vou até a janela e olho entre os frisos das persianas. Vejo Vic entrando no velho Chevrolet 56 com Brian segurando a porta pra ele. O novato fecha a porta e corre para o outro lado do carro, uma longa franja se desprende do penteado e cai sobre o rosto. Olho bem para o garoto tentando memorizar as suas feições. Enquanto eles se afastam, vejo o homem do outro lado da rua. Quando carro dos guardiões se distância, o homem olha os sinais de trânsito e atravessa o cruzamento em direção ao antiquário.

Fico intrigado, e espero para ver o que ele vai fazer. Sento na velha cadeira de balanço que Victorio deixara de frente para a porta e espero. Em instantes uma sombra assoma nas janelas e logo desaparece atrás da pesada porta de carvalho do antiquário. Ele tenta a maçaneta, mas eu deixara a porta trancada. Faço menção de me levantar para abrir, mas para a minha surpresa a tranca começa a se mexer. O desgraçado está forçando a minha fechadura. Me contenho e fico sentado no escuro com os braços apoiados nos joelhos e a cabeça baixa, olhando entre as mechas de cabelo, para a porta. Um estalo e ela se abre, ele empurra a porta como se estivesse entrando em sua casa. A vontade de dragá-lo para as sombras do antiquário é muito grande, eu espero que ele se vire para mim. Assim que o homem me vê da um passo atrás e faz menção de ir embora.

- Já vai? – Pergunto arrastando as sílabas. Ele corre para fora. Lembro das palavras de Vic. Se ele queria apenas falar comigo, por que invadir a loja e por que diabos saiu correndo. Abro a porta e vou andando decidido, direto para o desgraçado.

Um carro buzina, outro freia forte e o som faz as poucas pessoas na rua olharem para o cruzamento. Atenção era tudo o que eu precisava. Para me deixar ainda mais irado, uma brecha se abre rapidamente na penumbra e, por um segundo o sol me banha, sinto a pele queimar como o inferno, isso vai demorar a cicatrizar. Um fumegar leve pode ser visto saindo do sobretudo. Vejo o homem correndo em disparada rua acima, em direção ao centro. Posso alcançá-lo com facilidade, mas deixo que se afaste um pouco. Quando ele vira a esquina e já se sente seguro, pára pra tomar fôlego. É ai que eu o pego e empurro para uma ruela transversal repleta de caçambas de entulho e lixo. Lugar bastante apropriado.

- O que você quer comigo? – Pergunto de forma ameaçadora entre os caninos, aproximando meu rosto do dele. O coitado arregala os olhos. Acho que ficou mais assustado com o rosto queimado, em carne viva do lado direito, do que com as presas a mostra.

- Eu... Eu... – Ele tenta falar enquanto o seguro um palmo acima do chão com um único braço. Acho que exagerei, ele é só um vassalo. – Meu... Meu Mestre pediu para en... Entregar... – Ele ia tirando apressadamente um envelope do casaco. Arranco da mão dele e o rasgo com a boca, tirando em seguida o conteúdo para ler.

Assim que vejo o lacre Real começo a acreditar na história de Vic. Fico pasmo e solto o vassalo, ele não corre, seria tolice. O rapaz se ajeita enquanto leio a “convocação”.

- Agora você parece estar entendendo. – O rapaz começa a falar de forma articulada e segura. – Meu Mestre quer você presente no Neo Plaza às... – Agora ele perdeu completamente a noção do perigo. Agarro a garganta do infeliz e o suspendo novamente. Um pingente pula fora do casaco preto, a figura de um dragão ocidental.

- Moleque, com quem você pensa que está lidando? Seu vermezinho imundo! –Aproximo minha boca de seu ouvido. – Você gosta disso? – Pergunto em um sussurro realmente baixo. – Gosta da sensação, gosta de servir de comida pros imortais? – Ele não responde. Como a maioria dos mortais apenas arregala os olhos. Atiro-o no chão. – Diga ao seu Mestre que já paguei as minhas dívidas com ele.

- Ele... Ele não vai gostar de... – Ele começa a falar com a voz entrecortada pela falta de ar. Eu cerro os olhos e mostro as presas, guinchando para ele com os braços abertos. É um velho truque que sempre funciona, dessa vez não foi diferente. O vassalo se cala e corre como se o diabo estivesse em seu encalço.

Observo o homem correr pela rua, assim que está fora de vista abro minha mão e observo o pingente que roubei sem que ele percebesse. Um pequeno dragão de bronze com um minúsculo rubi no lugar do coração.

- Hellen. – Volto para o antiquário a passos largos, tentando imaginar o que realmente está acontecendo. Primeiro a estranha visita de Victorio, depois a convocação, e agora isso, Hellen D. Hart. Começo a imaginar se a final Vic estava certo e não apenas ficando senil.

Quando chego à loja escuto um som estranho. Abro a porta cuidadosamente imaginando quem poderia ser tão azarado a ponto de ter escolhido justamente a minha loja para roubar. Entro sorrateiramente e me esgueiro entre as peças à venda. O som agora é um zumbido baixo e parece vir de trás do balcão. Corro e em um segundo estou do outro lado. Esperava encontrar alguém escondido, mas percebo que o som vem de trás da estante.

No balcão, aciono o dispositivo no chão, a prateleira atrás de mim se abre revelando itens raros e valiosos. Minha atenção é imediatamente capturada por uma velha espada de gume duplo, a Espada Sicária, uma relíquia do Oriente Médio. A lâmina reluz em um sinistro tom vermelho, quase imperceptível.

A maior parte do que se fala sobre magia e objetos encantados, no mundo mortal, nunca passou de especulação. Ver a espada reluzir me lembra que existe muita magia entre os mundos. Se eu já não fizesse parte das trevas, certamente estaria a ponto de mergulhar nelas.

Curioso, empunho a arma, ela não é muito comprida nem pesada. Tenho uma sensação de poder, só de tela nas mãos. Mas por que só agora ela “despertou”? Pondero sobre os últimos acontecimentos e uma sensação ruim parece me engolir.

Passo o resto do dia debruçado sobre livros. Um dos lados positivos de se ter um antiquário é possuir uma vasta quantidade de informação datada de épocas remotas. Vic falou sobre uma profecia, se existir algum registro em minha coleção eu vou encontrar.

Já são quase vinte e uma horas quando a sineta da porta começa a tilintar insistentemente. Será que ninguém olha para a placa de “fechado”? Deixo os livros no estúdio e desço pra loja. Assim que chego à porta vejo a silhueta de uma figura corpulenta contra a janela e ouço um som que lembra um cachorro farejando.

- Abra logo essa porta, Draine! – A voz ordena, imperativa como o estrondo de um trovão. – De todos que conheço talvez este seja aquele com que eu me dê melhor, apesar de tudo em nós dizer que deveríamos ser inimigos mortais. Destranco a porta reconhecendo a voz.

- O que você quer, Orion? – Pergunto enquanto abro a porta. Orion me fita por um instante com um certo espanto nos olhos. Levo a mão ao rosto, já havia esquecido o ferimento.

- Você está horrível, Draine. - O gigante negro passa por mim, quase me empurrando. Se fosse outro eu já teria perdido a paciência.

- Há muita coisa acontecendo, e um morcego como você pode precisar da ajuda de alguém como eu. – Ele fala piscando um olho e mostrando os dentes em um largo sorriso.

- Para um lobo velho, você até que late bastante. – Retruco em tom de brincadeira. Esse deve ser o primeiro momento agradável dos últimos dias.

Orion é bastante semelhante a mim na maneira de vestir, mas acho que o sobretudo preto cai melhor em mim, nele as canelas ficam aparecendo.

Ele vai atravessando a loja, direto para as escadas nos fundos, que levam ao apartamento. O careca se sente em casa.

Em instantes estamos na sala, Orion saca uma garrafa de vinho no bar e se joga no sofá colocando as pernas sobre a mesa de centro. Arranca a rolha com os dentes e dá um longo gole. Paro próximo a ele e sento em um dos bancos altos do bar. Abro uma garrafa de vinho e me sirvo de uma generosa taça, é claro que prefiro a olfação à degustação.

- O que você está sabendo? Faz dias que eu não o vejo. – Antes de me responder Orion põe a garrafa de lado e me olha com atenção. Os olhos castanhos, quase negros, fitam diretamente os meus, parecem procurar a minha alma, mas essa é uma tarefa fadada ao fracasso, não há nada para se encontrar.

- Draine, tem uma guerra ai fora. Os morcegos estão varrendo todas as zonas da cidade em busca de aliados.

- Até mesmo a zona lupina? – Pergunto em tom irônico.

– Eles que se atrevam! - Orion responde rangendo os dentes. – Os Lupinos não os ajudariam. Nem mesmo se tivéssemos um inimigo em comum. Não se pode confiar em um chupador de sangue. – Fico com uma expressão séria. – Pare com isso, Draine. Você não é como eles.

– Você tem razão, eu não sou como eles. – Respondo secamente, mas, ainda assim, Orion sorri. – Eu sou o pior deles. – O gigante de ébano assume uma expressão séria antes de falar.

– Sim, pode-se dizer isso. – O clima fica tenso por alguns instantes. – Mas, ainda assim, confio em você, Draine. – Ele se recosta melhor no sofá. – Nós já protegemos as costas um do outro antes, e você nunca me decepcionou.

– Por outro lado você me atravessou com uma barra de aço, quando estávamos no bairro asiático. – Falo com naturalidade. A confiança de Orion tem um grande valor pra mim. Ele é um ancião de seu povo, e um dia, isso pode salvar a minha “vida”.

– Essa foi à única forma de acertar aquele seu maldito mestre licantropo! – Ele gargalha. – O maldito cego podia ver melhor do que eu em plena luz do dia, em um campo aberto. – Concordo com a cabeça. Kio era realmente formidável, apesar de ser um louco. Ele havia me treinado pra depois tentar me matar em, segundo ele, uma luta justa com um oponente a altura. Quem disse a ele que eu luto limpo? Que o inferno o tenha.

– Você não veio aqui apenas pra me proteger. O que você quer, Orion? – Pergunto enquanto sinto o delicado aroma do vinho, cuja safra era 1969, um bom ano para as vinícolas.

– Droga, Draine! Por que você sempre acha que há algo mais? – Ele pergunta de forma tão espontânea que eu quase acredito, quase. Coloco a taça sobre o bar e olho para ele de forma questionadora. – Está bem! Certo! Você venceu! – Ele fala claramente transtornado. – Preciso da sua ajuda. – Imediatamente penso que ele também pode me ajudar.

– Do que você precisa, Orion? – Pergunto sem pensar.

– Toda essa movimentação é perigosa para o meu povo. Os vampiros de zonas opostas estão se unindo. Você tem influência na cidade. – Ele faz uma pausa. Já imagino o que ele quer, e sei que não vou gostar. – Preciso saber se eles estão se preparando para lutar contra o meu povo, ou se isso se limita ao domínio da cidade. – Ele está sério, parece preocupado, e deve estar mesmo para me pedir algo assim. Orion sabe melhor do que ninguém que eu lutei muito para sair desse meio de tramas e traições, e agora ele me pede para voltar.

Levanto-me e vou até a janela, as luzes na rua estão acesas e brilhando em toda a sua intensidade, exceto aquele maldito poste perto de praça, ele continua piscando.

– Se eu fizer isso por você. – Sussurro observando a rua. Orion ergue uma sobrancelha de forma interrogativa e coloca definitivamente a garrafa de lado. – Você terá que me fazer um favor antes. – Ele levanta vem até o meu lado e, também observando a rua, pergunta.

– O que você precisa, Draine?

Encontrar uma pessoa. – Ele me olha descrente.

– Você, precisa de ajuda para encontrar alguém? – O gigante coça a cabeça. - Isso é novo. Quem é o infeliz?

– Eu não desejo mal a ela.

– Ela. Entendi. E quem seria ela?

– Uma lupina. – Orion arregala os olhos, fica tão assombrado que o branco dos olhos chega a destoar em sua face. Espero que ele se recomponha antes de continuar. - Noite passada estive na mata e vi uma lupina correndo no meio de uma alcatéia, ela tinha cabelos longos e olhos castanhos mais brilhantes que já vi, pele clara, quase angelical e corria descalça. – Ele cerra os olhos como quem não gosta do que está ouvindo e volta observar a rua.

– E por que você quer encontrá-la?

– Porque, porque... – Eu olho para Orion de maneira questionadora e ele retribui da mesma forma. – Eu... Eu não estou certo. Mas não se preocupe não lhe farei mal algum. – Ele me observa com se estivesse analisando um ladrão em um interrogatório.

– Está pedindo muito, Draine. – Ele responde secamente, não é próprio dele.

– Você sabe de quem estou falando, não é?

– Sim, eu sei... – Ele começa a responder, mas eu o interrompo.

– Nós protegemos as costas um do outro, não é? – O gigante cerra novamente os olhos e parece, mais uma vez, buscar a sinceridade dentro de mim.

– Se eu lhe disser o que quer saber, você terá que jurar não fazer nenhum mal a ela e se empenhará ao máximo em me ajudar...

– Feito. – Respondo de imediato, sem pensar nas conseqüências. Até eu me surpreendo agora. Orion me analisa por mais alguns instantes antes de pedir para nos sentarmos. Ele me diz onde posso encontrá-la e mais, ele me diz quem ela é. É a minha vez de ficar assombrado.

Por: Alessandro Dantas

quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

Cidade da Noite

Está frio, mas isso não me incomoda, ele faz parte de mim, do que eu me tornei. O frio e a noite sempre foram meus companheiros. Até hoje.

É tarde, a floresta está imersa na noite, mas está longe de ser silenciosa. Salto entre os galhos sem acreditar no que vejo. Uma alcatéia está atravessando a mata e no meio dela uma jovem com não mais do que vinte anos. Ela parece fazer parte da alcatéia, e por algum motivo, eu não consigo parar de segui-la. Eles são velozes, e a menos que revele a minha presença não vou conseguir acompanhá-los.

Alcançamos os limites da floresta. Eu já estava ficando para trás. Deixo que se afastem, seria arriscado e tolo tentar segui-los sem cobertura e, se realmente são o que imagino, me fariam em pedaços. Fico agachado sobre os galhos observando enquanto se afastam. A garota pára enquanto o resto da alcatéia prossegue. Ela olha diretamente para o ponto onde estou e parece farejar o ar. Ela me encara, embora eu esteja certo de que não pode me ver. Aqueles olhos castanhos brilhantes esquadrinham a mata enquanto os cabelos negros esvoaçam para trás com uma brisa da noite. A jovem olha fixamente para o ponto onde estou, as nuvens se afastam levando a escuridão. O luar revela sua pele alva e um traje incomum, que realça as silhuetas do corpo...

– O que estou pensando? – Sussurro para mim mesmo abaixando a cabeça. Distraio-me e quando volto minha atenção, ela se foi. – Droga. – Praguejo baixo.

Saltando para o chão percebo a sorte que tive. Se não houvesse me alimentado a pouco de um lobo, ela teria sentido o meu cheiro, todos eles teriam. Com certeza eles eram Licantropos, também conhecidos entre os eruditos da sociedade mortal como Garou, aqueles que recebem sua condição como um presente e não como uma maldição.

Caminho pela trilha que deixaram, o que é revelador. Há marcas no chão. Eram seis, sem contar a garota, e ela corrida com os pés descalços. Mas o odor que deixaram, leve, porém distinto, é o que mais me intriga. Eu estava certo, eram lupinos. A alcatéia parecia estar caçando, há marcas de sangue pelo caminho, talvez um deles estivesse ferido. Subitamente meus pensamentos vão para a garota e uma angústia profunda me atinge, talvez ela esteja ferida. Balanço a cabeça como que para espantar os pensamentos. – O que há comigo? Era só uma lupina. – Digo a mim mesmo. Meu pequeno amigo, um camundongo branco, se agita no bolso do casaco.

Depois de duas horas caminhando de volta, alcanço os limites da floresta, os limites impostos pelos homens. Nesse ponto paro e contemplo a cidade aos meus pés, onde me sinto mais próximo do que eu fora um dia. Sorrio observando as luzes acesas, o majestoso Neo Plaza, rasgando o céu no centro da cidade, rompendo a cortina de nuvens que protege gente como eu. Mais além é possível ver as docas, do outro lado da cidade, a principal rota de comércio que abastece o lugar.

Começo a descer a encosta íngreme onde me encontro em direção ao interior de uma pedreira. Salto para o chão, meu casaco lembra as asas de um pássaro negro mergulhando. A altura não é um grande problema. Alguns cães latem e escuto o tilintar de suas correntes junto aos portões. Vejo uma velha cabine de vigia com uma lâmpada acesa, mas o vigia parece ter sido vencido pelo frio, consigo vê-lo encolhido em baixo de um cobertor, usando uma touca de lã, sentado, ouvindo um pequeno e velho rádio. Nem o latido dos cães o separa do aconchego da cabine, de qualquer maneira ele só tem pedras para guardar.

Corro alguns metros, apenas para pegar impulso, e salto sobre a grade da pedreira. É fácil escalar o alambrado e me atirar por sobre os arames farpados. Em segundos estou caminhando pela rua. Fecho o meu sobretudo, levanto a gola, e esfrego as mãos em frente ao rosto como quem está com frio.

Ao virar da primeira esquina me deparo com um bando de vagabundos tentando se aquecer em uma fogueira improvisada em um velho tambor de ferro. Eles são inofensivos, e me ignoram, assim como eu a eles. Passos chamam minha atenção, três jovens com casacos pesados, gorros e luvas vem atravessando a rua, no peito de um deles, reluz sobre a claridade do poste um medalhão de ouro com a letra “G”. Não significa nada para mim. Ele veste um casaco azul que se abre quando ele corre até a minha frente estendendo a mão.

– Ô, ô, ô, ô. Calminha ai! – Fala o rapaz a minha frente enquanto os outros se aproximam pela minha direita. Um dos jovens, branco e magro como um faquir, pára ao meu lado segurando a gola do sobretudo.

– Que beleza de casaco, tio. Material de qualidade. – Fala com um ar de ladrão barato, daqueles que roubam bolsas de senhoras idosas. Odeio essa gente.

– Você não sabe que é muito perigoso andar sozinho a essa hora da noite, irmão. Você pode topar com alguém ruim. - O terceiro, um negro forte com um brinco de ouro na orelha esquerda, se aproxima por trás tentando fazer uma voz ameaçadora.

Eles me forçam a entrar em um beco, os únicos que sabem o que está acontecendo são os vagabundos, mas eles não vão se intrometer, com certeza estão felizes por não ser com eles.

– Vai tirando o casaco, pessoa. – Fala o que parece ser o líder, com aquele medalhão dourado sempre balançando. Ele fala fazendo gestos amplos com os braços. Eu fico parado.

– Tá surdo, ô esquisito? Tira o casaco ou você vai saber o que é medo de verdade, irmão! – O negro esbraveja aproximando o rosto do meu ouvido. Eu não resisto à tentação. Respondo com um sorriso escapando dos lábios.

– Eu sou a coisa mais apavorante por aqui, moleque. – As palavras saem arrastadas entre meus caninos, ao mesmo tempo em que meus olhos brilham em tom vermelho sangue. Eu me delicio com o olhar aterrorizado dos três.

O primeiro a morrer é o negro, por um motivo óbvio: ele está mais próximo. Agarro o pescoço dele e com uma mão a vida se vai, junto ao som de ossos quebrando. Os outros dois se afastam, eles não fogem, ainda não entenderam o perigo que correm. O magricela dispara pelo beco, ele entendeu. Em um piscar de olhos já estou parado na frente dele. Ele bate contra o meu corpo e cai no chão. Piso em seu pescoço. Mais um estalo, mais um pescoço quebrado. O líder do grupo se aproxima, ele tenta passar correndo, mas o som da corrente do medalhão o denuncia, eu o agarro pelo braço. O rapaz se desvencilha sacando um canivete, mas continua preso no beco.

– Quem é você? – Ele grita. - O que é você? – Ele já está perdendo a razão. Felizmente, agora o vento está forte e começa a nevar, ninguém irá nos ouvir.

Eu me aproximo, e ele recua, o pavor é evidente. O medo é como um perfume excitante.

– Você sabe o que eu sou, moleque. – Respondo com um sussurro, mesmo sabendo que a pergunta é retórica. O rapaz tropeça nos próprios pés e, mesmo caído, continua a me apontar o canivete. Eu seguro a mão do canivete, torço e giro o pulso, a arma cai no chão que começa a se cobrir de neve. Agarro o medalhão e pergunto olhando em seus olhos.

– “G”? O que significa? – O rapaz tenta articular algumas palavras, mas eu só ouço um balbuciar sem sentido. Solto a mão e o levanto pelo pesado casaco azul, trazendo-o para bem perto de mim. Ele tenta afastar o rosto, mas me olha direto nos olhos. – Você quer viver, moleque? – Pergunto sussurrando entre os caninos. O rapaz não responde, apenas arregala os olhos. Ninguém pode dizer que eu não lhe dei uma opção.

Saio do beco girando o medalhão em uma das mãos. Volto a caminhar pela rua. Os vagabundos me observam a distância, eles com certeza não ouviram nada, mas sabem que aconteceu algo ruim. Antes que eu vire a esquina um deles vai até o beco e sai com o casaco azul, a noite será menos fria para alguns.

Guardo o medalhão no bolso assim que entro na rua seguinte, dou uma boa olhada a frente apenas para constatar que a expressão, “À noite a cidade dorme”, não se aplica aqui. Muitos bares, ao melhor estilo inglês estão abertos, a maioria sobre o regime de: “Até o último cliente”.

Ajeito a gola do casaco e enterro as mãos nos bolsos, enquanto avanço rua abaixo. A maioria dos pubs é bastante comum, janelas grandes ou pequenas, estão sempre abarrotados de pessoas, vítimas em potencial, para mim ou para qualquer outro. O que realmente me interessa são os bares que tem a entrada abaixo do nível da rua. È neles que a realidade parece alcançar o máximo de seu significado. São locais, digamos, mais seletos.

Lembro-me da lupina. Percebo que estou parado de pé na rua, olhando para os bares e sorrindo sozinho, feito um bobo. Uma prostituta gorda está no meu campo de visão, a coitada sorri pra mim achando que estou dando confiança pra ela. Balanço a cabeça tentando espantar a bizarra imagem que me vem à mente. Volto a andar pensando que o inferno pode estar mais próximo do que parece.

Ao longo do caminho passo por muitas vielas, as ruas por aqui são repletas delas. O pior das vielas é que quase sempre tem um filete de água podre correndo por elas, vindo sabe-se lá de onde. As malditas ruelas formam um verdadeiro ninho de rato no mapa da cidade, daí o bairro ser chamado de “Cidade dos Ratos”. A cidade, à noite, pode ser perigosa, uns lugares mais do que outros.

Passo por um cruzamento, os sinais de trânsito estão piscando no amarelo. Ao longe posso ouvir o som de um ônibus se afastando. – Merda. – Praguejo baixo. Vou ter que continuar a pé por mais três quadras. Do outro lado do cruzamento uma figura, enrolada em um sobretudo marrom gasto, está recostada a parede de um velho cinema, daqueles que usavam rolos de fita. O nome do lugar é Cine Néon, o letreiro ainda brilha.

Algumas pessoas estão caminhando pela outra calçada, indo em direção ao centro da cidade. A noite está acabando para alguns e só começando para outros. O homem do sobretudo me observa da penumbra. Fico tentado a ignorá-lo, mas ele gesticula para que eu me aproxime, enquanto tenta acender um cigarro. Assim que chego o reconheço e ele se apruma, oferecendo o maço de cigarros.

– Você sabe que eu não fumo, Vic. – Falo sem mostrar o quanto este encontro está me irritando. Ele dá um trago no cigarro com tanta vontade, que posso ver o filtro queimar até a metade. Logo em seguida ele tem um acesso de tosse.

– Isso ainda vai te matar, meu velho. – Falo fingindo preocupação. É bom ser visto com bons olhos por esses tipos.

– Dra... ine. – Ele tenta falar o meu nome, entrecortado pela tosse. A essa altura a minha preocupação começa a se tornar genuína. É melhor ter um Guardião velho ao seu lado do que um novo pegando no seu pé.

– Droga. – Pragueja ele. – Provavelmente você deve ter razão... – Toma fôlego. – ...isso ainda vai me matar. – Sorrio.

– O que você quer, Vic?
– Você sumiu um tempão...

– E você quer saber onde fui e o que estive fazendo, não é? – Corto o sermão.

O velho sorri e dá mais um trago, desta vez mais comedido.

– Se eu precisasse perguntar tudo isso, eu não seria “o que” sou. – Ele responde sério, cerrando os olhos. Odeio esse cara. Mas o velho tem razão. Não é a toa que ele é o mais antigo na ativa.

– Achou o que procurava na floresta?

– Você é o Guardião. Não sabe? – Respondo em tom de brincadeira, por mais irritante que seja ter que ficar parado na rua conversando com o velho. Eu não gosto do tipo dele, e não gosto dele, mas principalmente, eu o respeito. Sorrio com todo o meu cinismo.

– Vejo que voltou satisfeito. – Ele sorri e se vira para ir embora. Na mesma hora vejo outro homem encostado em um carro antigo, na esquina para onde o velho se dirige.

– Parceiro novo, Vic? – Pergunto descrente. – Você, com um parceiro?

O homem pára e se vira para mim com um leve sorriso nos lábios. – Você sabe como é, Draine. Ao contrário de você, eu não posso viver para sempre. – Ele volta a caminhar.

Eu não preciso de mais nenhuma palavra, não é um parceiro. Ele está treinando um substituto.

O novato abre a porta para Vic. Victorio Relione. Eu me espanto de lembrar o verdadeiro nome do Guardião, e mais ainda de achar que sentirei falta do velho irritante.

Antes de entrar e tomar o volante, o novato me observa por alguns segundos, parece estar surpreso, como se visse um de “nós” pela primeira vez. Apenas por curiosidade eu sorrio com os caninos a mostra, mesmo sabendo que Vic não vai aprovar essa quebra de conduta, especialmente em um lugar tão aberto. O rapaz tenta evitar, mas arregala os olhos, e se recompõe em seguida. Ele entra no Chevrolet 56 que Vic tem desde que o conheci, a cerca de cinqüenta anos. O carro passa por mim, na direção em que eu seguia e Vic acena pra mim.

– Velho desgraçado, sabia que eu estava indo naquela direção. – Sorrio. Definitivamente eu vou sentir falta desse maldito.

Continuo andando, deixando a Cidade dos Ratos para trás e chegando ao bairro antigo. Não tão decadente como o bairro vizinho, apesar de ter as suas semelhanças, o bairro antigo é mais “habitável”. As construções são baixas, em geral não possuem mais do que cinco andares, em sua maioria são casas em estilo colonial.

Um casal e uma menina com uns seis anos passam por mim, vindos da “Cidade dos Ratos”. A menina está com um casaco e um gorro cor de rosa que teima em cair na frente dos olhos. Ela olha para mim e sorri estendendo um caderno de pintura. A mãe, que usa um piercing no nariz com uma corrente pendurada, puxa o braço da menina e a repreende por falar com estranhos. Como se ela mesma fosse uma pessoa comum e vivesse em um lugar como outro qualquer. A sociedade humana é mesmo hipócrita.

Passo por algumas lojas, a esta hora as vitrines estão protegidas por grades e portas de metal. Na esquina já consigo ver o Café Rose, vinte e quatro horas aberto e sempre pronto a oferecer uma refeição quente. Aceno para a garçonete, Danielle. Ela retribui com um sorriso e cintilantes olhos verdes. Noites atrás a salvei de uns pervertidos, desde então ela é parte da lista. Gosto da menina, ela é cheia de vida e está disposta a retribuir de forma incondicional a ajuda. Uma mão lava a outra, é o que dizem.

Uma placa enferrujada indica: Colona. Já havia esquecido o nome do bairro, de tão pouco que é usado. Uma das últimas lembranças daqueles que descobriram a área da cidade séculos atrás. Sigo pela rua principal, em direção ao centro da cidade. Esta é única rua bem pavimentada e conservada do bairro. Por aqui passam os carros fortes que abastecem o banco local e as lojas da vizinhança. O progresso tem que continuar.

A única maldição neste bairro é o descaso, os postes estão falhando ou estão simplesmente queimados, a noite não há segurança de verdade e a população de rua se multiplica como gafanhotos. Sorrio. É o lugar perfeito para alguém como eu.

Alguns carros passam por mim e um dos desgraçados acerta a única e pequena poça que existe na rua, o que me vale um banho de sujeira. Balanço os braços como se fosse possível secar o casaco. Mickey pula para fora do bolso completamente ensopado. O danado dispara pela rua em direção ao antiquário, que já é visível na esquina a frente, bem, ao menos a tabuleta de madeira. Está escrito em letras antigas: “Antiquarium. Se você procura, nós temos”.

Do outro lado da rua ainda existe uma praça com um velho coreto. Muitos bancos estão espalhados ao redor, onde vejo alguns casais namorando e até um pipoqueiro desafiando o frio. As pessoas têm que ganhar a vida.

Logo me vem à mente a imagem da lupina e a lembrança de como ela era linda. Aqueles cabelos negros balançando livres ao vento, contrastando com a pele clara...

– Outra vez. – Me repreendo ao perceber que estou parado no meio da rua sorrindo como um bobo. – Por que ela me fascina tanto?

– Eu não sei, talvez seja o cabelo comprido. – Concordo com a cabeça. Só então percebo que tem alguém falando comigo. Pelo canto dos olhos eu a fito. Uma menina com cerca de treze anos e um olhar sagaz. Ela ajeita o casaco cinza, quase preto, do qual ia saindo um lenço vermelho, como se quisesse ficar mais apresentável. A menina sorri para mim e estende uma cesta de palha cheia de flores.

– Talvez uma dessas possa ajudar. – Ela me oferece uma rosa, olhando para uma mulher que passeia na praça a minha frente. Pego a rosa e ela rapidamente abre a mão com um sorriso angelical estampado no rosto. O mundo é mesmo dos espertos. Olho de cima a menina, o vento sopra e a franja vermelha que sai por baixo da boina vai pro lado. Coloco um dólar na mão da ruivinha que agradece com um polegar, e se vira desejando boa sorte. Antes de atravessar a rua ela ainda aconselha. – Ei, moço... um banho também ajudaria. – Engraçadinha. Ela para no meio da rua e corre de volta para mim.
– Eu sou Carla. – Ela pisca e se vira indo embora. Isso quer dizer que verei essa pestinha por aqui outras vezes.

Balanço mais uma vez os braços e volto a caminhar. A lâmpada do poste mais a frente está piscando, prestes a queimar e deixar o bairro um pouco mais escuro. Olho para o céu e só vejo as nuvens, nenhuma novidade. Paro diante da porta do Antiquário, pulo e bato com força na placa de madeira, ela balança, rangendo nas dobradiças. Pulo de novo e alcanço a chave deixada sobre ela. Abro a porta e percebo que há alguém me observando do outro lado da rua. O homem da às costas e se afasta, indo em direção ao centro da cidade.

– Vou ter que esconder a chave em outro lugar. – Digo a mim mesmo balançando a cabeça. Dou mais uma olhada em volta e, antes de entrar, respiro fundo. Estou em casa.

Por: Alessandro Dantas

terça-feira, 13 de dezembro de 2011

O Verdadeiro Desafio

Poucos prazeres se comparam a correr livremente pela floresta. Sentir o vento contra o meu corpo, a sensação das patas em contato com a terra, os aromas da floresta e o calor da fogueira que fizemos minutos atrás queimando em minha alma.

Por algum motivo, sinto como se Kida também estivesse aqui. Sinto falta de compartilhar esses momentos especiais com minha irmã mais velha. E pensar que eu estava receosa quanto a essa iniciação. Me lembro especificamente da nossa última conversa a respeito. Como eu questionava ela a respeito das tradições e como ela sabia como me fazer concordar mesmo não gostando da idéia. É uma memória que por algum motivo guardo com carinho especial.

– Kida, por que eu tenho que ir pra antiga casa de nossos pais? – Eu sei que já perguntei isso um milhão de vezes, mas Kida nunca me deu uma resposta satisfatória. Minha irmã pode ser a líder do Clã da Meia Lua, mas eu não tenho que me submeter a todas as suas vontades.

– Você sabe que é a tradição. Nós já tivemos essa conversa um milhão de vezes. – Parece que ao menos na contagem nós concordamos.

– Mas... – Tento protestar, mas ela me lança aquele olhar severo de irmã mais velha que age como mãe. Não sei por que eu ainda tento, ela sempre ganha. Kida sempre cuida de mim, é difícil ficar contra ela.

– Você sabe que esse é o nosso costume. É assim que honramos os nossos antepassados. – Tento abrir a boca e ela levanta um dedo. – Sempre que um membro de nosso Clã chega à maioridade ele deve voltar as suas origens. Está decidido, você vai. - Respiro fundo enquanto Kida se levanta com um sorriso, daqueles que faz parecer que nunca houve uma discussão, e sai.

Nunca imaginei que essa seria uma lembrança tão gostosa. Quando volto ao meu presente não faço mais idéia de onde o grande lobo cinzento que me acompanhava está. Droga, perdi ele de vista, com essa eu não contava. Não é como se eu pudesse simplesmente farejar e rastrear um ancião. Acho que só o que me resta então é aproveitar o resto do passeio.

Durante o passeio, percebo que não estou mais apenas vagando pela floresta. Alguém está me seguindo e algo me diz que não é o ancião. Eu definitivamente me recuso a ser caçada no meu próprio ritual de passagem. Seja quem for, vai aprender a não se meter com a princesa dos lupinos!

Se esse espertinho acha que vou ser uma presa fácil, ele veio atrás da lupina errada. Agora que sei que estou sendo caçada, ele vai ter que se mostrar pra me pegar e ai veremos quem sai vitorioso. Com meu caminho trilhado com cuidado, dou algumas voltas para confundir o caçador quanto ao meu destino e evitar uma armadilha e finalmente elaboro a minha própria. Sem qualquer aviso, eu disparo em direção antiga cachoeira que deságua no riacho perto da cabana da minha família. É um lugar bem iluminado pelas estrelas e onde eu tenho como combater em solo familiar.

O caçador é bom, tenho que admitir isso, pois, mesmo com meus desvios e corridas, ele está sempre próximo. Se eu achasse que há mais de um deles jamais iria até a cachoeira, seria fácil ficar encurralada, mas seremos apenas eu e ele, pretendo lutar até que um de nós dois caia. A princesa não vai fugir de seu primeiro combate como adulta. Tenho que tomar cuidado pra que essa coisa de princesa não acabe me subindo a cabeça.

A cachoeira sempre me acalma. Perto dela parece que não há nada de errado no mundo. Em dias normais, o som da água caindo e os aromas da floresta se misturam e fazem com que seja impossível pensar em qualquer outra coisa, mas hoje não é um dia normal.

Ao me aproximar do lago onde tantas vezes já me banhei, nem mesmo um momento de paz me é concedido. Quando me aproximo da água esperando ver o brilho do meu próprio pelo, o que eu vejo é uma das ultimas coisas que eu queria ver hoje: os olhos amarelos e furiosos de Wolfgart me encaram e o pelo negro dele brilha ao se eriçar. Dou um pequeno salto para trás, me preparando para o duelo. Mesmo não querendo ver Wolfgart, se ele veio até aqui pra atrapalhar a minha passagem, então é a oportunidade perfeita pra eu colocá-lo de volta no seu lugar.

Mesmo Wolfgart sendo muito mais velho, ele sabe que eu também sou uma guerreira, justamente por isso ele não me subestima. Ficamos nos rondando por algum tempo antes que a dança comece. O tamanho dele é assustador, ele é um dos poucos com uma forma lupina maior do que a de Kida, mas, como nós dois sabemos, tamanho e força não são o bastante para vencer um duelo de predadores. Como ele é mais forte, espero que ele ataque primeiro. Minha vantagem está em deixar ele pensar que estou com medo.

O ataque vem assim como esperado, a força devastadora do lobo negro se jogando sobre mim e tentando me derrubar para morder minha jugular. Esse maldito não está de brincadeira. Deixo que ele me derrube, mas no momento em que a vitória lampeja nos olhos dele eu faço o meu movimento: minhas duas patas traseiras se apóiam na barriga dele, quando ele prepara a mordida fatal, eu avanço e são as minhas presas que encontram a jugular dele. Sabendo que não conseguiria mantê-lo sob meu domínio por muito tempo, eu uso as patas traseiras em sua barriga para me darem impulso e deslizar para longe dele e ainda conseguir um mais uns arranhões de bônus em seu ventre.

A fúria domina o corpo do lupino negro que avança ferozmente contra mim. Ele lança diversos ataques com as patas e com a mandíbula, mas a minha velocidade é bastante superior a dele, ao menos no que diz respeito a esquivar, não consigo uma brecha para um contra-ataque direto e se uma das mordidas dele me acertar será o meu fim. Preciso de um plano rápido, pois o ferimento no pescoço dele não foi fundo o bastante para fazer com que ele pare tão facilmente.

Os ataques continuam de forma frenética e a dança nos leva de volta a beira da cachoeira e é ai que o meu plano finalmente fica pronto. Me aproveito de minha velocidade superior para tomar um pouco de distancia dele, ficando no limite onde a água permite que eu ainda me movimente bem. Quando ele salta em minha direção, eu sei exatamente o que fazer, a forma negra se aproxima por cima, mas não rápida o bastante para impedir a minha transformação de volta para a forma humana. Meu corpo, ainda encantado com a força e a destreza lupina que rapidamente abandonam a minha forma humana, encontra o seu caminho para desviar do salto e montar nas costas do lobo negro cravando minhas unhas na ferida que consegui fazer com os caninos. O urro selvagem desesperado invade a noite e eu sinto o enorme corpo negro do lobo tremer até seu ultimo suspiro.

Minha respiração rápida combina pouco com o sorriso vitorioso nos meus lábios. Finalmente minha família está livre dessa praga. Desde que nosso irmão, Kael “O Lobo Vermelho”, desapareceu em uma batalha contra os vampiros. Kida, por ser a mais velha das filhas de nosso pai, herdou a liderança do Clã. Para não perder essa liderança, Kida aceitou Wolfgart como seu consorte, mas não como seu marido, o que significa que ele é o terceiro no comando, logo depois de mim. A minha maioridade e a idéia absurda de que em breve terei um casamento (sendo que eu nem mesmo namorado tenho!) seria um golpe terrível para Wolfgart, pois o meu marido (isso soa mais ridículo cada vez que essa palavra aparece) poderia assumir a liderança do Clã em um ano, caso Kida não se casasse segundo as nossas leis. Mas o importante é que agora ele não é mais uma ameaça. Nós finalmente estamos livres.

Meu sorriso triunfante não dura muito e se transforma em pura surpresa quando a luz da transformação ilumina o corpo de pelos negros que estava inerte aos meus pés. Dou um passo para trás assustada e a surpresa se torna pavor quando a luz revela que o lobo negro era na verdade Kida. Eu simplesmente não posso acreditar, é impossível! Aquele era Wolfgart, tinha que ser ele! Eu conheço o cheiro de Kida, os dois não se parecem em nada. Eu não posso acreditar que matei minha própria irmã, eu não posso ser esse monstro. Minhas pernas de repente não possuem mais forças para me sustentar e eu caio em prantos sobre o corpo dela e mesmo sendo impossível é ela quem está ali. Eu acaricio seu cabelo enquanto as lagrimas e os soluços desesperados tomam conta de mim.

Sem que eu tenha tempo de entender como ou porque, Kida tosse um pouco de sangue e seus olhos tristes encontram os meus. Não sei dizer qual delas é a pior sensação, ver Kida morta aos meus pés, ou encarar o desprezo e a desaprovação naqueles olhos outrora tão cheios de vida. As palavras fracas dela são como facas em meu coração:

- Irmãzinha, você nos desgraçou. Com a minha morte o Clã ficará perdido. – Eu choro como um filhote, não há palavras para enfrentá-la, ainda mais agora. – Você não é forte ou esperta o bastante para liderá-los. – Mais uma golfada violenta de sangue. - Você deve entregar o controle do Clã a Wolfgart, agora ele é o único que pode nos salvar. - Ela só pode estar de sacanagem! No leito de morte ela vem repetir o discurso daquele imbecil de quando eu os ouvi falando sobre mim. Isso é inaceitável! Meus sentimentos se misturam. A raiva e a tristeza agora resumem tudo o que eu sou. – Você agora deve ir até ele e contar o que aconteceu aqui. Conte a Wolfgart como você me matou.

Meus olhos se fecham, meu corpo se torna rígido e os meus punhos se serram. Quando eu finalmente absorvo a ultima sentença, meus olhos se abrem sem qualquer tristeza restante, eles agora brilham apenas com a fúria de todos os lobos do Clã da Meia Lua. – Criatura imunda, não importa o quanto você se pareça com a minha irmã, ela nunca seria tão fraca a ponto de entregar o Clã para Wolfgart sem ao menos considerar alguém de seu próprio sangue. Eu sou a princesa dos Meia Lua e não há nada que você ou aquele verme ganancioso possam fazer quanto a isso. – Com minhas ultimas palavras eu afundo a cabeça daquela criatura que se passa pela minha irmã no lago e, com lagrimas contidas nos olhos, eu vejo o seu verdadeiro fim.

Alguns minutos se passam antes que eu possa me levantar. Quero ter certeza de que dessa vez ela está realmente morta. Quando finalmente me convenço de que não haverá outro golpe a ser desferido contra os meus sentimentos, eu olho para a lua e rezo para que os meus verdadeiros ancestrais olhem por mim. É hora de encontrar minha verdadeira irmã e saber o que diabos acabou de acontecer. Saindo da água eu retorno a minha forma lupina e corro de volta para a floresta.

Ao chegar de volta na cabana, o gigante de ébano está mais uma vez a minha espera sentado próximo à fogueira. Eu me aproximo e paro sobre as minhas roupas, onde volto à forma humana e me visto.

Ele nem ao menos me encara até que eu esteja sentada de frente para ele como quando começamos o ritual. Quando nossos olhos finalmente se encontram um calafrio percorre a minha espinha e posso jurar que o vi sorrir por um instante, isso me irrita. Será que ele acha alguma graça no que eu acabei de passar?

- Sua raiva é desnecessária, porém compreensível, princesa. – As palavras dele são calmas como se nada tivesse acontecido.

- Desnecessária? Você só pode estar brincando! – Talvez ele esteja calmo, mas antes que eu possa pensar com clareza meus sentimentos explodem em palavras furiosas. - Eu acabei de lutar com Wolfgart e de assassinar a minha irmã! Isso é loucura! O que está acontecendo aqui? O que eram eles realmente?

- Eu a aprovei no meu teste, mas os espíritos da Meia Lua precisavam testá-la também. Eu lhe dei a ilusão de que o teste estava terminado, pois é exatamente assim que o será o seu reinado. Quando pensar que um problema está resolvido outro maior irá surgir, não há tempo para descansar, não há uma pausa. Os seus inimigos estarão sempre prontos para tirar vantagem de qualquer fraqueza que você venha a demonstrar. Os espíritos fizeram com que o seu maior inimigo aparecesse para enfrentá-la. Você foi caçada e confrontada e ainda assim saiu vitoriosa, apenas para ver o seu maior medo se tornar realidade. Sua irmã morta pelas suas ações, o Clã caindo em desgraça, porque você não soube distinguir o verdadeiro inimigo, mas, mesmo assim, você superou o choque e conseguiu reverter a situação, desmascarando a farsa dos espíritos. O teste terminou de verdade quando você finalmente superou todos os desafios e se levantou de cabeça erguida.

- E por que Kida nunca me contou sobre esse teste? Por que não fui preparada para enfrentá-lo? – Pela primeira vez me sinto realmente abandonada, como se não houvesse mais ninguém cuidando de mim.

- Porque esse era o seu desafio e sua irmã não lhe faria bem algum lhe contando sobre ele, assim como você não deve contar às futuras gerações de governantes. O teste é o que os torna poderosos o bastante para liderar o Clã. – As palavras dele fazem sentido e eu me sinto um pouco infantil pelos meus sentimentos, mas mesmo assim não posso negar que eles existiram.

- O seu reinado ainda terá muitos outros testes onde nem todos os inimigos estarão ao seu alcance. Caberá a você decidir como lidar com cada novo desafio, foi para isso que nós a preparamos. – O gigante de ébano termina de falar e se levanta, eu instintivamente faço o mesmo.

- Espero que no nosso próximo encontro esteja mais receptiva a minha presença, princesa. – Apesar de toda a minha revolta, não consigo evitar um certo sentimento de gratidão pela lição dele e um rápido sorriso se forma no meu rosto.

- Eu só preciso de um bom banho, seguido de uma maravilhosa noite de sono e garanto que amanhã meu humor estará bem melhor. – Eu digo me espreguiçando.

A fogueira se apaga e a fumaça cobre o gigante de ébano que desaparece antes que a mesma tenha desaparecido por completo. Eu ainda fico ali por alguns minutos processando o que acabou de acontecer. Ainda não decidi como lidar com tudo isso, mas por hora vou apenas aceitar que finalmente acabou.