sábado, 22 de maio de 2010

Exílio

Já faz mais de um ano. Há tempos não tenho caçadas ou perseguições no meio da noite. Minha estrada seguiu um rumo diferente. Eu falhei em capturar a criatura, agora devo pagar por meus pecados.

Um ano enfiado nesta paróquia, cercado de velhos que se dizem bons cristãos. Não sei quem é mais hipócrita aqui, eu, que digo estar tentando mudar meu destino, ou eles que dizem ser livres de pecados e tentações.

Cheguei aqui como um peregrino que perdeu sua fé. Eu falhei em uma missão importante e por isso não me sinto digno de continuar caçando. O mundo não pode arcar com as conseqüências das minhas falhas.

Eu era o melhor no que fazia, justamente por isso não me era permitido falhar. Com certeza o que aquela criatura levou já custou muitas vidas inocentes e o sangue delas está nas minhas mãos. A culpa é minha.

Não importa quantos falsos cristãos eu expulse daqui. Esses pedófilos, ladrões e sabe-se lá mais o que não param de vir procurar perdão através de um homem que não consegue perdoar nem os seus próprios pecados.

Ainda bem que o dia finalmente acabou. Não há nada como passar pela porta do meu quarto, sentir o cheiro de mofo que impregna esse lugar, ir até a cama, arrastá-la, abrir espaço entre as pedras na parede e poder finalmente fumar o meu cigarro em paz. Esse lugar realmente está me afetando.

Não importa quantas vezes eu reveja as runas marcadas sobre a porta, as linhas de sal que cercam o quarto, ou mesmo volte a polir todas as armas que nunca pretendo voltar a usar, o tempo todo tenho a impressão de que isso não acabou. Cedo ou tarde vou ter que lidar com os meus demônios.

Alguém bate à minha porta. O som da madeira rangendo acaba com o meu momento de sossego. Que tipo de idiota vem me procurar a essa hora? Esses pedantes hipócritas nunca se cansam de reclamar da vida?

Confiro as minhas armadilhas, a faca de prata presa à bota, o cantil de água benta para servir ao convidado, a pistola em minhas costas presa ao cinto e a faixa de sal abaixo da fresta da porta. Com tudo em ordem e a despeito de minha notável irritação, acabo optando por atender a maldita porta.

Acho que essa era uma das últimas coisas que eu esperava ver. Como raios ela chegou até aqui? Os olhos castanhos me fitam como no dia em que ela morreu; seu cabelo ruivo caindo sobre os seios e o colete preto ainda manchado sobre a blusa branca com as mangas dobradas e sujas. Eu a reconheceria em qualquer lugar.

- Olá, major. – Ela me cumprimenta com um sorriso, parece que nada aconteceu e é apenas mais um dia de trabalho. Odeio essa sensação.

- Bianca, eu... – Não adianta. Por mais que eu me esforce às palavras não saem. Eu falhei com ela no passado e agora ela sorri pra mim como se nada estivesse acontecendo.

Seus olhos me encaram durante o silêncio. Ainda estou decidindo como reagir quando ela fala de novo:

- E então, vai me deixar entrar ou ficar me olhando com essa cara assustada o dia todo? – Em um segundo de diálogo ela já está testando a minha paciência. Definitivamente é ela.

- Bianca, o que houve com você? Eu te enterrei faz cinco anos! Quem foi o desgraçado que te trouxe de volta? Eu juro que vou fazê-lo pagar! – Me recupero do baque e a fúria me domina quando penso no que pode ter acontecido.

- Uhum. Oi, pra você também, major. E, não, ninguém me trouxe de volta. Eu apenas não tinha forças o bastante pra me materializar e se você não me ajudar não vou poder me manter assim por muito mais tempo, então, dá pra arrastar o sal e me deixar entrar? – O tom desafiador dela é único, eu sabia que tinha coisa errada chegando.

Faço uma pequena brecha na linha de sal e risco uma das runas no canto da porta. Ela me lança um sorriso sarcástico e entra apressada. Lembro-me de quando era eu a ter esse tipo de expressão estampada no rosto.

- Você continua o mesmo. Ainda se culpando por tudo de errado no mundo. – As palavras dela são cortantes. Antes de encará-la novamente me ocupo em arrumar a linha de sal e talhar a runa de volta.

Quando nossos olhos se encontram ela está sentada sobre a minha cama encarando o lugar onde guardo o meu antigo equipamento de caça.

- Há quanto tempo você está comigo? – Lanço a pergunta ignorando o comentário dela sobre a minha culpa.

- Basicamente desde que você decidiu bancar a criança e fugiu das suas responsabilidades. – As alfinetadas não param. Nem mesmo depois de morta ela pára de me atormentar com a verdade.

- Eu não fugi de nada. Apenas aceitei que não era mais digno do trabalho. – Exagerei. Dessa vez não consegui convencer nem a mim mesmo.

- Por favor, major. O que eu preciso fazer pra que você me leve a sério, começar a conversa com: “Perdoe-me, padre, pois eu pequei?” – Apesar do sarcasmo ela fala sério. Quando se é parceiro de alguém por tempo de mais você aprende a ler nas entrelinhas de cada sentença.

- Então, por que ainda guarda seu equipamento de caça e faz questão de que ele esteja pronto pra ser usado? – Ela, de fato, é a representação da personalidade que eu costumava ter.

- Eu mudei, Bianca. Não sou mais o combatente impulsivo e sem consciência que eu costumava ser. – As palavras são ditas tentando convencer mais a mim do que a ela.

A única resposta que ela me dá é uma encarada séria. Os comentários sarcásticos que eu censurei em minha mente por tanto tempo começam a vir à tona. É melhor mudar o assunto.

- Do que você precisa? Não disse que estava com pouca energia?

Um sorriso se abre em seu rosto.

- Não. Eu só precisava que você me deixasse entrar. Já estou ligada a uma certa peça de seu equipamento há muito tempo. – Droga. De fato eu estou enferrujado. Antigamente eu jamais acreditaria nesse tipo de história desesperada sem uma prova.

- Touché. – Ao menos eu ainda sei reconhecer quando fui vencido. – Então o que fez você reaparecer justamente agora? – A pergunta surte efeito imediato. Ela entende que o momento de brincadeiras acabou e a seriedade que se apresenta em sua expressão é a prova disso.

- Temos pouco tempo até que os céus se tornem vermelhos. Devemos nos mobilizar o quanto antes para impedir que aquela criatura que você deixou escapar consiga terminar os rituais. – As palavras me atingem como facas, eu sabia que cedo ou tarde teria que tornar a lidar com isso. – Eles já estão quase prontos, mas ainda podemos impedi-los.

Minha única reação imediata é acender outro cigarro. Maldição. É a primeira vez nos últimos meses que fumo mais de um na mesma noite.

- Muito bem, Bianca. Você quer que eu arrume a minha bagunça, mas o que te faz pensar que dessa vez as coisas serão diferentes? Que eu não vou simplesmente deixá-lo escapar por entre os meus dedos novamente? – Novamente as perguntas são direcionadas mais a mim mesmo do que a ela. Será que eu estou pronto pra voltar a caçar?

Ela se levanta, ainda com o rosto sério, segura meu rosto entre suas mãos (mesmo sendo um espírito o toque dela continua a me acalmar), seu olhar profundo mergulha dentro do meu e ela me responde com calma:

- Porque, dessa vez, você não estará sozinho. – Não posso evitar o sorriso que se abre em meu rosto.

- Não me leve a mal, Bianca, mas há pouco que um espírito pode fazer em campo.

Ela me abraça e sussurra ao meu ouvido:

- Eu tenho os meus truques, lembra? E, além disso, quem disse que eu estou falando de mim? – Ela só pode estar brincando!

Me afasto imediatamente, como ela ousa insinuar algo assim?

- Bianca, nem pense nisso! Eu trabalho sozinho. O que aconteceu com você é prova disso, eu não sou a pessoa certa pra isso. Não existe a menor chance de você me convencer a liderar um grupo. – Ela apenas me observa enquanto deixo minhas frustrações extravasarem.

- E quem disse que você vai liderar? – Ela me apunhala em meu ponto fraco.

- Além de montar uma equipe você ainda quer que eu obedeça às ordens de alguém? - Estou completamente fora de mim, mas não consigo evitar. Como sempre, ela tem o dom de me tirar do sério.

- É bom que você já tenha feito as pazes com a idéia de montar uma equipe. – Traído por minha própria fúria.

O silêncio se torna um peso enquanto nos encaramos nos próximos segundos. Posso sentir o cigarro queimando entre os meus dedos, dou mais um trago e tento recobrar a razão.

- Ótimo. Eu assumo a minha responsabilidade nisso tudo, mas me recuso a arrastar mais alguém pra dentro disso. Nós vamos caçar, seremos apenas eu e você, entendido? – Minha postura muda conforme as palavras saem. Estou de fato voltando a ser um caçador. E se vai ser assim, então serei novamente o melhor que há no serviço. Mas essa é minha sina e eu não pretendo deixar mais ninguém ser pego no fogo cruzado entre eu e os malditos.

- Tudo bem, major. Quando partimos? – O sorriso vitorioso domina sua expressão. A menina sabe mesmo como avivar meu espírito.

Ela espera por uma resposta enquanto me viro com o cigarro na boca, abro o baú onde escondia meu equipamento, - Precisa mesmo perguntar? - destravo a velha escopeta e olho de volta pra ela. - Vamos caçar alguns demônios.

sábado, 15 de maio de 2010

Leituras e Interpretações

Lá vou eu. Mais uma tentativa inútil de extrair algum conhecimento dessa biblioteca medíocre da faculdade. Nunca vi disso, uma única prateleira interessante. E nem é de ocultismo de verdade. É apenas de esoterismo. Se eu tiver algum pecado pra redimir, certamente, vasculhar essa prateleira é o modo certo de fazer isso.

Um livro sobre vampiros é o melhor que eu consigo aqui, talvez seja interessante, basta que ele não venha me dizer que vampiros montaram uma banda emo que brilha na luz do sol. Não suporto essas teorias adolescentes, esse pessoal poderia, no mínimo, estudar um pouco antes de sair escrevendo besteira pra agradar a um bando de menininhas que acabaram de entrar na puberdade. A verdade certas vezes é dura demais pra esse pessoal aguentar.

A biblioteca daqui é sempre vazia nesse horário, a maior parte dos alunos passa a hora do almoço discutindo nas lanchonetes ou perturbando o juízo dos professores. Teoricamente isso seria algo ruim, o que explicaria a maré de notas baixas da maioria dos alunos, mas, ao menos pra mim, não é assim. Eu vejo isso como uma brecha para ter algum sossego estudando sozinha.

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Uma hora se passou desde que eu comecei a ler. Até que o livro não é dos piores, só não tem utilidade nenhuma pra pessoas, como eu, que querem aprender sobre magia de verdade. Eu não tenho ilusões de grandeza pra achar que vou sair por ai caçando vampiros ou qualquer loucura desse tipo. Isso é muita viagem! Até por quê, eu, até hoje, não tive problemas com vampiros. O único que eu conheci era até gente boa. Ou talvez isso é o que ele estava querendo que eu pensasse na ocasião.

Quando me preparo para devolver o livro inútil a prateleira de onde ele, provavelmente, não deveria ter saído e voltar à aula, reparo que tem alguém mais averiguando a prateleira onde peguei o livro. “Quem será ele?” Eu me pergunto. Só há um modo de saber. Assim sendo, lá vou eu bancar a boba esperançosa.

Eu ainda decidia como puxar assunto quando os olhos azuis dele praticamente me fazem enlouquecer. Poucas vezes alguém me fitara com tamanha intensidade. Ele caminha calmamente até a mesa onde eu estava e se senta olhando pra mim.

Antes que eu consiga assimilar que ele ainda está de fato ali, sua voz melodiosa lança a pergunta: - Você não quer se sentar comigo? Acredito que podemos ter uma conversa bastante interessante. – Por essa eu definitivamente não esperava. Primeiro, o cara aparece na sessão de livros que só eu visito, logo depois, ele me chama pra conversar. Finalmente as coisas estão melhorando.

Ainda meio sem jeito, eu me sento, ponho o livro de volta sobre a mesa e pergunto: - Sobre o que você quer conversar? – É, eu sou péssima em escolher as palavras para dar início a um diálogo.

Pra minha sorte ele parece não concordar. Ao menos o sorriso que aparece em seu rosto me diz que não. Acho que estou encabulada. Faz tempo desde que algum rapaz se dispôs a conversar com a menina louca que sonha com o futuro e fica fuçando livros de ocultismo por aí.

Vejo seu olhar fitando o livro que eu, até então, julgava inútil; sem que eu perceba os olhos dele estão de volta nos meus e antes que eu consiga pular fora de minha própria confusão mental, ele diz: - Não deixe que lhe desencorajem. Você é detentora de dons únicos, com o tempo eles começarão a fazer sentido e, através deles, você poderá ajudar outros a fazer a diferença nos dias que estão por vir. Até lá, apenas continue se dedicando as coisas que o seu coração acha importantes. – Devo estar sonhando, parece que estou tendo um daqueles diálogos loucos que tenho comigo mesma nas noites depressivas em que preciso de alguém pra me animar.

Me sinto um pouco acanhada. Desvio o olhar por um instante e vejo algumas pessoas passando e me olhando pela janela como se eu estivesse fazendo algo realmente estranho. Quando olho de volta pro rapaz, me deparo com a cadeira vazia. Pra onde ele foi? Ele estava bem aqui e... Era bom de mais pra ser verdade. Aconteceu de novo.

Acho melhor eu dar o fora daqui. Ou então esses desocupados vão começar a fofocar (ainda mais) sobre mim. Pego a minha bolsa e o livro que eu tencionava devolver e volto pra aula. Já tenho algo pra me empenhar enquanto ouço as mesmas correções de exercícios de sempre e finjo estar prestando atenção.

As horas se arrastam. Os segundos parecem minutos e os minutos parecem horas. Eu já nem sei mais sobre o que estou lendo. Um capítulo inteiro passou diante dos meus olhos e eu não consigo citar uma palavra se quer do que acabei de ler. Durante todo o dia, meus pensamentos se voltam para o mesmo tópico: será que eu realmente estava fazendo algo de estranho? Digo, ainda mais estranho do que o de costume. Agora eu dei pra imaginar pessoas e interagir com elas? Eu finalmente enlouqueci de vez? Ou será que isso é só o início de alguma coisa e esse cara, seja ele quem for, está querendo me apontar alguma direção? Eu, definitivamente, não tenho essas respostas, mas prefiro acreditar que as coisas finalmente estão começando a acontecer.

sexta-feira, 7 de maio de 2010

Prazeres Inocentes

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Era disso mesmo que eu precisava. Não há nada como uma boa caçada noturna para reanimar um espírito rebelde. Durante a caça não preciso me preocupar com o que os outros membros da matilha estão planejando; não preciso me fazer parecer uma boa menina para que Kida possa ser vista como uma nobre na frente de Wolfgart e, principalmente, não fingir me importar com a vida de cada um daqueles malas que ficam me pajeando o dia todo, como se eu fosse uma bonequinha de porcelana que eles tem que polir constantemente. Aqui eu posso ser eu mesma.
Meus pés descalços saboreiam o toque da grama, meus pulmões se enchem com a brisa da noite e a caçada começa. A calça jeans aperta um pouco e a blusa pinica com meu suor, mas não posso correr o risco de tirá-las e me expor, caso esbarre com algum humano desavisado. Afinal, muitos casais jovens vem até a beira da floresta pra namorar. Como eu gostaria de poder dizer que já desfrutei desse mesmo prazer inocente. Enfim, é melhor me acostumar com a roupa e correr atrás da minha presa.
Não muito longe daqui há uma clareira onde os animais silvestres costumam ir para acasalar. Droga, até os cervos estão com a vida amorosa mais em dia do que a minha e ter esses seis vira-latas me rondando não ajuda. Eu já cansei de despistá-los na mata, mas a liberdade momentânea não compensa o sermão de Kida: “Você é uma filha da Matilha da Meia-Lua, não pode se dar ao luxo de vagar sem os guardiões, blá, blá, blá...” Que saco, só de lembrar das palavras dela já é como se ela estivesse aqui reclamando. Eu até admiro o poder que ela transmite através das palavras e, segundo ela, eu também aprenderei a falar dessa forma com o tempo. Até lá, vou apenas fazendo o possível para aguentar essa baboseira toda. Chega de Kida, estou aqui pra caçar e esquecer a matilha.
Cheguei na clareira de forma sorrateira. Muito bom, tenho três alvos para escolher: um grupo de coelhos, fácil de mais; um lobo solitário dormindo, me recuso a caçar lobos. Não é legal caçar nossos primos e, por fim, um jovem cervo, provavelmente procurando uma parceira para acasalar, perfeito. Encontrei a minha presa.
Espero ansiosamente até que ele entre na mata, no momento em que o faz a perseguição começa. Apesar de jovem, ele já viveu o bastante para saber quando sua vida está em perigo. Ele é ágil, chega a ser divertido correr atrás dele. Eu poderia saltar sobre suas costas e acabar com isso em instantes, mas isso tiraria o prazer da caça, meus instintos falam mais alto do que a estratégia e o prazer da corrida consome o meu corpo até que eu consiga alcançá-lo.
Posso sentir o cheiro de seu medo quando agarro seu pescoço e é como se sua vida se tornasse um fluxo que eu sinto esvair por entre os meus dedos quando quebro o seu pescoço. Foi divertido. Me alimento um pouco com sua carne para repor as energias do dia e permito que os guardiões dividam o resto entre eles. Afinal, os malas se esforçaram pra me acompanhar.
Bem, a diversão acabou, é hora de voltar pra casa. Talvez eu passe na doceria e compre um chocolate pra levar pros filhotes, eles ainda não podem caçar e não é justo que não apreciem algo de bom de vez em quando.
Vamos tornar o final dessa noite interessante, será que os malas conseguem me acompanhar numa corrida até a beira da floresta? Começo a me empenhar na corrida, eventualmente sorrindo para eles na penumbra da floresta, mas algo me chama atenção em um ponto da mata. A corrida pára e fico observando o ponto que me chamava a atenção. Com os guardiões aqui, jamais conseguirei perseguir esse tipo de instinto em paz. Observo o vento soprando e o farfalhar das folhas nas copas árvores, não sei porque, mas meu coração está disparado. Não é medo, é uma sensação que nunca experimentei antes, meu estomago fica embrulhado e um calafrio percorre a minha espinha. Acho que isso quer dizer que, seja lá o que for que está me observando, nós nos veremos de novo. Então, com um sorriso no rosto decido retomar a corrida pra casa. A noite acaba de valer a pena.

quinta-feira, 6 de maio de 2010

Upgrades

Lá se vai o meu pagamento. Outra mão dessas e eu certamente vou sair daqui devendo algo mais do que a minha alma. Talvez seja hora de parar enquanto ainda posso sair “ileso”, ou talvez eu possa blefar e levar essa galera toda em uma mão só. É grana o bastante pra reformar o hangar e ainda fazer uns upgrades no equipamento.

É, farei isso pela equipe. Upgrades para todos ou a minha alma vendida (de novo). Tomara que, dessa vez, Deus, algum anjo, ou apenas alguém de bom coração esteja olhando por mim.

Apostei mais do que ganhei em três meses na Força Aérea nessa mão. É tudo ou nada!

Ótimo, simplesmente, ótimo. Eu vou pro inferno. Não tenho se quer uma dupla pra começar. Mas nem por cima do meu cadáver esses ladrões de almas imundos vão saber disso. Peço três novas cartas com o meu sorriso mais cínico estampado no rosto.

O carteador é um zumbi, então, pouco me importa o que ele acha ou deixa de achar, se é que ele acha alguma coisa; O cara à minha direita já está com, pelo menos, duas recompensas na cabeça e um monte de almas pra vender, filho da mãe; O que está à minha esquerda é um feiticeiro safado, sorte a minha que as regras do cassino inibem a magia dele, ou o sacana levaria tudo o que eu tenho e mais alguma coisa emprestada.

Três cartas: Ás de copas, Ás de ouros e Ás de espadas! Eu sou o safado mais sortudo que esse cassino já viu. Uhu!

De volta à Força Aérea, os três ases são imbatíveis! A mesa é minha!

Agora vou dar o fora daqui antes que eu perca tudo outra vez.

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Foi uma boa noite afinal. A porta bate atrás de mim e o vento frio da cidade enche o meu rosto, nunca foi tão bom chegar nesse beco fedido.

Vou andando até a esquina já começando a planejar os upgrades e algo literalmente cai do céu bem atrás de mim. Bem, ao menos não sou eu que vou ter que desamassar essa lata de lixo.

- Você me deve mais uma, piloto. – A voz irritante desse anjo não podia vir em hora pior. Estava tudo bom de mais para ser verdade.

- O que você quer, Jarael? Acha mesmo que eu vou acreditar que foi a sua magia que me salvou dentro do cassino? Nem mesmo você tem poder pra alterar a realidade lá dentro. – Ao menos eu realmente espero que ele não tenha. É impressionante como o jogo termina e eu tenho que continuar blefando pra sobreviver.

- Não seja tolo. Eu não precisei alterar a realidade, bastou derrubar o controle mental do feiticeiro sobre o zumbi e impor o meu próprio. Ou seja, você não ganhou nada, apenas foi o meu instrumento para que ele perdesse. – Ele me diz isso com toda a naturalidade, não há um pingo de sarcasmo em sua voz. Como eu o odeio.

- Ok, você leva o crédito, muitíssimo obrigado por nada. Agora já posso ir? Tenho afazeres. Afinal, alguém tem que limpar o nosso mundo dos seres que você devia estar caçando. – Ele realmente me dá nos nervos, nem quando eu o provoco ele esboça alguma emoção.

- Não banque o espertinho comigo, piloto. Você vai doar esse dinheiro para caridade. Todo ele.

- Você só pode estar de sacanagem com a minha cara! Eu quase morri lá dentro! Eu mereci essa grana. E, além do mais, eu acabei fazendo o seu trabalho e gastando do meu bolso pra isso. Então, você poderia ao menos demonstrar alguma gratidão.

- Aquele que dá aos pobres está fazendo um empréstimo a Deus. – Ótimo. Nem mesmo quando ele usa o sarcasmo eu arranco uma expressão dele.

- Não me venha com esse papo, Jarael. Minha grana, meus empréstimos e minha cruzada. Não me venha com esse papinho de caridade...

- Muito bem. Você pode manter a terça parte de seus lucros. O resto deve ser doado à igreja. – Não é que o safado ainda teve a audácia de me cortar? Inacreditável.

- Viu? Você sabe ser razoável quando quer.

O filho da mãe me fita com aqueles olhos sem expressão e desaparece com a mesma mágica com que apareceu. Simplesmente inacreditável. Isso só acontece comigo.

Acabo fazendo o combinado e deixando uma generosa quantia na caixinha de donativos da igreja perto do hangar. O padre terá uma grande surpresa pela manhã. Afinal, sem a ajuda de Jarael provavelmente o feiticeiro teria levado a melhor na mesa de pôquer.

Ao menos ainda dá pra reparar o carro, eu acho.

Antes da Alvorada


Dessa vez eu realmente achei que conseguiria fazer as coisas de um modo simples. Eu já devia saber que as coisas nunca são simples. Não nessa vida.
Já faz seis horas que o grimório foi roubado da biblioteca da ordem. Se o demônio que o roubou escapar, dificilmente serei capaz de impedir seu ritual. Então essa perseguição termina hoje. O sol vai nascer em breve e as minhas chances de acabar com essa história de uma vez por todas vão embora junto com a noite.
Passamos por estradas de barro, trilhas no meio da mata e finalmente chegamos a esse castelo no meio do nada. Afinal de contas, que tipo de criatura hoje em dia ainda vive em um castelo isolado? Quem esse cara pensa que é?
Bem, pouco importa agora, o importante é que eu estou aqui e vou acabar com ele antes do sol nascer.
Salões grandes e escuros, cheiro de mofo, esse lugar realmente precisa de uma arrumação. Escadas, por que sempre tem que ter um monte de escadas de pedra? Atravessar o salão principal e chegar até o topo dos degraus não foi nada difícil. Tenho certeza que ele está por aqui, o cheiro de enxofre e sangue misturados é inconfundível.
Ao final da subida há apenas um pequeno vão com entradas para dois cômodos. O vento me diz em qual deles está o meu alvo. Entrar no quarto sem ser notado poderia ser um problema, mas o fato de a porta estar aberta facilita o meu trabalho. Percebo que esse é o momento perfeito para atacar, então pego uma das minhas ampolas de água benta e um punhado de sal grosso. Vou terminar isso agora!
Maldição, o ataque não foi perfeito. O demônio também não é nenhum novato. Percebendo o meu ataque no ultimo instante ele desviou, fazendo com que a água benta apenas atingisse uma de suas mãos, ao invés de destruí-lo.
Foi um ferimento leve, mas ainda assim forte o bastante para lhe arrancar um grito e fazer com que ele soltasse o grimório. Ao menos agora posso aproveitar que ele está enfraquecido para tentar exorcizar o demônio e libertar essa pobre alma. Ninguém deveria ter que passar por isso. Ver o seu corpo realizando ações grotescas é uma experiência pela qual poucos sobreviveriam sem perder a sanidade.
Decidido a libertar a alma do homem, avanço em direção a criatura com a guia amarrada no pulso direto e o crucifixo preso a ela apontado para o demônio enquanto inicio a prece em latim.
Novamente a minha estratégia não vai muito longe e, por algum motivo, ao invés de se contorcer e liberar o corpo do homem, o demônio dá uma risada debochada me encarando, com seus olhos brancos fixos nos meus, e desfere a primeira gracinha da noite:
- Acha mesmo que vai me banir como fez com aqueles vermes que encontrou semana passada? Não seja idiota. Eu sou superior, a nova era começou e os avatares do velho mundo não tem mais poder. Vai ter que fazer bem melhor do que isso, padreco!
Pronto, agora ele também acha que tem senso de humor. Para o azar dele eu com certeza não tenho. A oração em latim não funcionou como esperado, mas ao menos fez com ele abaixasse a guarda permitindo que eu me aproximasse para tentar um novo assalto com sal grosso e água benta.
Mais uma vez o plano falha por pouco, nunca foi tão difícil acertar um maldito. A risada dele deixou meu ouvido zumbindo e me causou uma leve tontura, mas nada que vá me impedir de completar a minha missão. Rápido ou não, esse maldito vai cair!
Só tenho mais uma ampola de água benta e o sal também está quase no fim, mas ao menos agora estou entre a janela e ele, nossas posições se inverteram e mesmo que ele tente pegar o grimório e correr pelo outro caminho, nas escadas ele se torna um alvo fácil para eu atingi-lo com a água benta e ele sabe disso.
Com o braço ferido, um ataque frontal é sem dúvidas desesperado, mas é isso mesmo o que ele faz. O demônio avança e eu percebo que suas mãos, antes humanas, agora parecem garras monstruosas. Meus reflexos frustram seu ataque, mas ainda assim posso sentir as unhas dele rasgando uma camada da minha pele enquanto me esquivo e percebo uma brecha em sua guarda.
É agora ou nunca! Derrubo a água benta em suas costas fazendo-o rolar para longe gritando. Porém, antes mesmo que eu possa me levantar e preparar um segundo ataque mais eficaz, o maldito já está de cócoras na janela me encarando,  saboreando o sangue em seus dedos e guardando o grimório em suas vestes.
- Talvez na próxima, padreco. Hoje, o dia é meu!
Por mais irritante que seja admitir isso, ele está certo. No momento em que me preparo para responder com um belo golpe do pouco que me resta de sal grosso, o desgraçado pula para trás e cai na floresta, desaparecendo em meio às árvores.
O demônio conseguiu escapar e não tenho mais forças ou recursos para continuar a caçada. Com a luz do dia as minhas esperanças de salvar aquele pobre homem se foram, e com elas também as minhas chances de impedir o ritual.
Só o que me resta agora é sentar na mesma janela, acender um cigarro e me conformar com o fato de que a caçada ainda vai continuar por mais um bom tempo, especialmente depois do que ele levou hoje.