terça-feira, 13 de dezembro de 2011

O Verdadeiro Desafio

Poucos prazeres se comparam a correr livremente pela floresta. Sentir o vento contra o meu corpo, a sensação das patas em contato com a terra, os aromas da floresta e o calor da fogueira que fizemos minutos atrás queimando em minha alma.

Por algum motivo, sinto como se Kida também estivesse aqui. Sinto falta de compartilhar esses momentos especiais com minha irmã mais velha. E pensar que eu estava receosa quanto a essa iniciação. Me lembro especificamente da nossa última conversa a respeito. Como eu questionava ela a respeito das tradições e como ela sabia como me fazer concordar mesmo não gostando da idéia. É uma memória que por algum motivo guardo com carinho especial.

– Kida, por que eu tenho que ir pra antiga casa de nossos pais? – Eu sei que já perguntei isso um milhão de vezes, mas Kida nunca me deu uma resposta satisfatória. Minha irmã pode ser a líder do Clã da Meia Lua, mas eu não tenho que me submeter a todas as suas vontades.

– Você sabe que é a tradição. Nós já tivemos essa conversa um milhão de vezes. – Parece que ao menos na contagem nós concordamos.

– Mas... – Tento protestar, mas ela me lança aquele olhar severo de irmã mais velha que age como mãe. Não sei por que eu ainda tento, ela sempre ganha. Kida sempre cuida de mim, é difícil ficar contra ela.

– Você sabe que esse é o nosso costume. É assim que honramos os nossos antepassados. – Tento abrir a boca e ela levanta um dedo. – Sempre que um membro de nosso Clã chega à maioridade ele deve voltar as suas origens. Está decidido, você vai. - Respiro fundo enquanto Kida se levanta com um sorriso, daqueles que faz parecer que nunca houve uma discussão, e sai.

Nunca imaginei que essa seria uma lembrança tão gostosa. Quando volto ao meu presente não faço mais idéia de onde o grande lobo cinzento que me acompanhava está. Droga, perdi ele de vista, com essa eu não contava. Não é como se eu pudesse simplesmente farejar e rastrear um ancião. Acho que só o que me resta então é aproveitar o resto do passeio.

Durante o passeio, percebo que não estou mais apenas vagando pela floresta. Alguém está me seguindo e algo me diz que não é o ancião. Eu definitivamente me recuso a ser caçada no meu próprio ritual de passagem. Seja quem for, vai aprender a não se meter com a princesa dos lupinos!

Se esse espertinho acha que vou ser uma presa fácil, ele veio atrás da lupina errada. Agora que sei que estou sendo caçada, ele vai ter que se mostrar pra me pegar e ai veremos quem sai vitorioso. Com meu caminho trilhado com cuidado, dou algumas voltas para confundir o caçador quanto ao meu destino e evitar uma armadilha e finalmente elaboro a minha própria. Sem qualquer aviso, eu disparo em direção antiga cachoeira que deságua no riacho perto da cabana da minha família. É um lugar bem iluminado pelas estrelas e onde eu tenho como combater em solo familiar.

O caçador é bom, tenho que admitir isso, pois, mesmo com meus desvios e corridas, ele está sempre próximo. Se eu achasse que há mais de um deles jamais iria até a cachoeira, seria fácil ficar encurralada, mas seremos apenas eu e ele, pretendo lutar até que um de nós dois caia. A princesa não vai fugir de seu primeiro combate como adulta. Tenho que tomar cuidado pra que essa coisa de princesa não acabe me subindo a cabeça.

A cachoeira sempre me acalma. Perto dela parece que não há nada de errado no mundo. Em dias normais, o som da água caindo e os aromas da floresta se misturam e fazem com que seja impossível pensar em qualquer outra coisa, mas hoje não é um dia normal.

Ao me aproximar do lago onde tantas vezes já me banhei, nem mesmo um momento de paz me é concedido. Quando me aproximo da água esperando ver o brilho do meu próprio pelo, o que eu vejo é uma das ultimas coisas que eu queria ver hoje: os olhos amarelos e furiosos de Wolfgart me encaram e o pelo negro dele brilha ao se eriçar. Dou um pequeno salto para trás, me preparando para o duelo. Mesmo não querendo ver Wolfgart, se ele veio até aqui pra atrapalhar a minha passagem, então é a oportunidade perfeita pra eu colocá-lo de volta no seu lugar.

Mesmo Wolfgart sendo muito mais velho, ele sabe que eu também sou uma guerreira, justamente por isso ele não me subestima. Ficamos nos rondando por algum tempo antes que a dança comece. O tamanho dele é assustador, ele é um dos poucos com uma forma lupina maior do que a de Kida, mas, como nós dois sabemos, tamanho e força não são o bastante para vencer um duelo de predadores. Como ele é mais forte, espero que ele ataque primeiro. Minha vantagem está em deixar ele pensar que estou com medo.

O ataque vem assim como esperado, a força devastadora do lobo negro se jogando sobre mim e tentando me derrubar para morder minha jugular. Esse maldito não está de brincadeira. Deixo que ele me derrube, mas no momento em que a vitória lampeja nos olhos dele eu faço o meu movimento: minhas duas patas traseiras se apóiam na barriga dele, quando ele prepara a mordida fatal, eu avanço e são as minhas presas que encontram a jugular dele. Sabendo que não conseguiria mantê-lo sob meu domínio por muito tempo, eu uso as patas traseiras em sua barriga para me darem impulso e deslizar para longe dele e ainda conseguir um mais uns arranhões de bônus em seu ventre.

A fúria domina o corpo do lupino negro que avança ferozmente contra mim. Ele lança diversos ataques com as patas e com a mandíbula, mas a minha velocidade é bastante superior a dele, ao menos no que diz respeito a esquivar, não consigo uma brecha para um contra-ataque direto e se uma das mordidas dele me acertar será o meu fim. Preciso de um plano rápido, pois o ferimento no pescoço dele não foi fundo o bastante para fazer com que ele pare tão facilmente.

Os ataques continuam de forma frenética e a dança nos leva de volta a beira da cachoeira e é ai que o meu plano finalmente fica pronto. Me aproveito de minha velocidade superior para tomar um pouco de distancia dele, ficando no limite onde a água permite que eu ainda me movimente bem. Quando ele salta em minha direção, eu sei exatamente o que fazer, a forma negra se aproxima por cima, mas não rápida o bastante para impedir a minha transformação de volta para a forma humana. Meu corpo, ainda encantado com a força e a destreza lupina que rapidamente abandonam a minha forma humana, encontra o seu caminho para desviar do salto e montar nas costas do lobo negro cravando minhas unhas na ferida que consegui fazer com os caninos. O urro selvagem desesperado invade a noite e eu sinto o enorme corpo negro do lobo tremer até seu ultimo suspiro.

Minha respiração rápida combina pouco com o sorriso vitorioso nos meus lábios. Finalmente minha família está livre dessa praga. Desde que nosso irmão, Kael “O Lobo Vermelho”, desapareceu em uma batalha contra os vampiros. Kida, por ser a mais velha das filhas de nosso pai, herdou a liderança do Clã. Para não perder essa liderança, Kida aceitou Wolfgart como seu consorte, mas não como seu marido, o que significa que ele é o terceiro no comando, logo depois de mim. A minha maioridade e a idéia absurda de que em breve terei um casamento (sendo que eu nem mesmo namorado tenho!) seria um golpe terrível para Wolfgart, pois o meu marido (isso soa mais ridículo cada vez que essa palavra aparece) poderia assumir a liderança do Clã em um ano, caso Kida não se casasse segundo as nossas leis. Mas o importante é que agora ele não é mais uma ameaça. Nós finalmente estamos livres.

Meu sorriso triunfante não dura muito e se transforma em pura surpresa quando a luz da transformação ilumina o corpo de pelos negros que estava inerte aos meus pés. Dou um passo para trás assustada e a surpresa se torna pavor quando a luz revela que o lobo negro era na verdade Kida. Eu simplesmente não posso acreditar, é impossível! Aquele era Wolfgart, tinha que ser ele! Eu conheço o cheiro de Kida, os dois não se parecem em nada. Eu não posso acreditar que matei minha própria irmã, eu não posso ser esse monstro. Minhas pernas de repente não possuem mais forças para me sustentar e eu caio em prantos sobre o corpo dela e mesmo sendo impossível é ela quem está ali. Eu acaricio seu cabelo enquanto as lagrimas e os soluços desesperados tomam conta de mim.

Sem que eu tenha tempo de entender como ou porque, Kida tosse um pouco de sangue e seus olhos tristes encontram os meus. Não sei dizer qual delas é a pior sensação, ver Kida morta aos meus pés, ou encarar o desprezo e a desaprovação naqueles olhos outrora tão cheios de vida. As palavras fracas dela são como facas em meu coração:

- Irmãzinha, você nos desgraçou. Com a minha morte o Clã ficará perdido. – Eu choro como um filhote, não há palavras para enfrentá-la, ainda mais agora. – Você não é forte ou esperta o bastante para liderá-los. – Mais uma golfada violenta de sangue. - Você deve entregar o controle do Clã a Wolfgart, agora ele é o único que pode nos salvar. - Ela só pode estar de sacanagem! No leito de morte ela vem repetir o discurso daquele imbecil de quando eu os ouvi falando sobre mim. Isso é inaceitável! Meus sentimentos se misturam. A raiva e a tristeza agora resumem tudo o que eu sou. – Você agora deve ir até ele e contar o que aconteceu aqui. Conte a Wolfgart como você me matou.

Meus olhos se fecham, meu corpo se torna rígido e os meus punhos se serram. Quando eu finalmente absorvo a ultima sentença, meus olhos se abrem sem qualquer tristeza restante, eles agora brilham apenas com a fúria de todos os lobos do Clã da Meia Lua. – Criatura imunda, não importa o quanto você se pareça com a minha irmã, ela nunca seria tão fraca a ponto de entregar o Clã para Wolfgart sem ao menos considerar alguém de seu próprio sangue. Eu sou a princesa dos Meia Lua e não há nada que você ou aquele verme ganancioso possam fazer quanto a isso. – Com minhas ultimas palavras eu afundo a cabeça daquela criatura que se passa pela minha irmã no lago e, com lagrimas contidas nos olhos, eu vejo o seu verdadeiro fim.

Alguns minutos se passam antes que eu possa me levantar. Quero ter certeza de que dessa vez ela está realmente morta. Quando finalmente me convenço de que não haverá outro golpe a ser desferido contra os meus sentimentos, eu olho para a lua e rezo para que os meus verdadeiros ancestrais olhem por mim. É hora de encontrar minha verdadeira irmã e saber o que diabos acabou de acontecer. Saindo da água eu retorno a minha forma lupina e corro de volta para a floresta.

Ao chegar de volta na cabana, o gigante de ébano está mais uma vez a minha espera sentado próximo à fogueira. Eu me aproximo e paro sobre as minhas roupas, onde volto à forma humana e me visto.

Ele nem ao menos me encara até que eu esteja sentada de frente para ele como quando começamos o ritual. Quando nossos olhos finalmente se encontram um calafrio percorre a minha espinha e posso jurar que o vi sorrir por um instante, isso me irrita. Será que ele acha alguma graça no que eu acabei de passar?

- Sua raiva é desnecessária, porém compreensível, princesa. – As palavras dele são calmas como se nada tivesse acontecido.

- Desnecessária? Você só pode estar brincando! – Talvez ele esteja calmo, mas antes que eu possa pensar com clareza meus sentimentos explodem em palavras furiosas. - Eu acabei de lutar com Wolfgart e de assassinar a minha irmã! Isso é loucura! O que está acontecendo aqui? O que eram eles realmente?

- Eu a aprovei no meu teste, mas os espíritos da Meia Lua precisavam testá-la também. Eu lhe dei a ilusão de que o teste estava terminado, pois é exatamente assim que o será o seu reinado. Quando pensar que um problema está resolvido outro maior irá surgir, não há tempo para descansar, não há uma pausa. Os seus inimigos estarão sempre prontos para tirar vantagem de qualquer fraqueza que você venha a demonstrar. Os espíritos fizeram com que o seu maior inimigo aparecesse para enfrentá-la. Você foi caçada e confrontada e ainda assim saiu vitoriosa, apenas para ver o seu maior medo se tornar realidade. Sua irmã morta pelas suas ações, o Clã caindo em desgraça, porque você não soube distinguir o verdadeiro inimigo, mas, mesmo assim, você superou o choque e conseguiu reverter a situação, desmascarando a farsa dos espíritos. O teste terminou de verdade quando você finalmente superou todos os desafios e se levantou de cabeça erguida.

- E por que Kida nunca me contou sobre esse teste? Por que não fui preparada para enfrentá-lo? – Pela primeira vez me sinto realmente abandonada, como se não houvesse mais ninguém cuidando de mim.

- Porque esse era o seu desafio e sua irmã não lhe faria bem algum lhe contando sobre ele, assim como você não deve contar às futuras gerações de governantes. O teste é o que os torna poderosos o bastante para liderar o Clã. – As palavras dele fazem sentido e eu me sinto um pouco infantil pelos meus sentimentos, mas mesmo assim não posso negar que eles existiram.

- O seu reinado ainda terá muitos outros testes onde nem todos os inimigos estarão ao seu alcance. Caberá a você decidir como lidar com cada novo desafio, foi para isso que nós a preparamos. – O gigante de ébano termina de falar e se levanta, eu instintivamente faço o mesmo.

- Espero que no nosso próximo encontro esteja mais receptiva a minha presença, princesa. – Apesar de toda a minha revolta, não consigo evitar um certo sentimento de gratidão pela lição dele e um rápido sorriso se forma no meu rosto.

- Eu só preciso de um bom banho, seguido de uma maravilhosa noite de sono e garanto que amanhã meu humor estará bem melhor. – Eu digo me espreguiçando.

A fogueira se apaga e a fumaça cobre o gigante de ébano que desaparece antes que a mesma tenha desaparecido por completo. Eu ainda fico ali por alguns minutos processando o que acabou de acontecer. Ainda não decidi como lidar com tudo isso, mas por hora vou apenas aceitar que finalmente acabou.

7 comentários:

  1. Ao ler esse conto alucinante, me recordo de nosso conversa, há alguns dias atrás, sobre o que é ser escritor... ^^ É isso, meu amigo, quando se tem o dom, a inspiração vem! Lembre-se que a arte de escrever nasce conosco, porém é ela quem nos diz quando precisa de nós para propagar sua beleza!

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  2. Depois de um tempão, finalmente posso ler suas histórias denovo!
    E voltou cheio de surpresas e criatividade.
    Adorei. Bom demais, como sempre.
    Quero o próximo conto mais rápido, heim?
    Boa sorte.

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  3. Voltou com tudo! Fazia muita falta,Renato.Todos nós nos acostumamos aos seus contos.Ficávamos esperando quando o próximo viria, assim como qualquer leitor aguarda a vinda do próximo "best-seller". Agora,se me permite, a descrição de tudo isso: um quê de melancolia,como sempre e adoro! Sua imaginação...de onde tira estas idéias? sua narrativa é muito mais interessante que a do cara que escreveu "Batalha do Apocalipse": comecei a ler, não me cativou o suficiente; achei até meio chata (espero que ele não seja amigo seu)e sua narrativa: isso sim, é autor brasileiro que fala do sobrenatural com competência e autenticidade no vocabulário e jeito de se expressar!!! E aquele toque de humor tão característico que não pode jamais ficar de fora! Bem vindo!!! Não pare mais! Ana, sua colega de trabalho.

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  4. Que bom que voltou a escrever! E voltou com um dos melhores contos. Bem diferente e muito bom! Tú é o cara!

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  5. O que dizer???
    Ficou fantástico... Gostei principalmente das partes das lembranças, as quais você citou de forma especialmente bela.
    To esperando a continuação.
    :P

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  6. Olá amigo, seu blog foi selecionado para ser um Blogueiro responsável. Selecionamos os blogs mais influentes dentro de cada área, e estamos convidado os mesmos para participar da campanha de Marketing Digital da Casa Ronald McDonald RJ. Caso você queira participar, pedimos que envie um email para midiassociais@casaronald.org.br para que possamos explicar melhor como funcionaria!
    Será um prazer ter seu blog como parceiro da Casa Ronald McDonald. Abrace a casa. Esperamos seu contato.
    Abraços

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  7. Isso q é lobisomem! HEUEAhauehaeu E não aquela porra q divide mulher com fadas!

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